Revolta na Ucrânia
O Estado de S. Paulo - 04/12/2013 |
A tragédia ucraniana é estar tão perto da Rússia a ponto de os dois países serem historicamente entrelaçados. A Rússia começou a se formar no ano 882, naquela que se tornaria a capital da Ucrânia, Kiev. Os ucranianos do Leste, etnicamente russos, somam 8,3 milhões de pessoas numa população de 48,4 milhões. O atual presidente do país, Viktor Yanukovich, só falava russo antes de enveredar pela política. Se algo irmanou ucranianos e russos ao longo dos séculos foi a fervorosa religiosidade como fiéis da Igreja Ortodoxa Russa. Mas a geração mais bem educada, laica e cosmopolita do Oeste ucraniano, que fez a Revolução Laranja em 2004 contra a escandalosa fraude que impediu a eleição da candidata Yulia Tymoshenko, em favor de Yanukovich, não tem os olhos postos em Moscou. (Depois de nomear a rival primeira-ministra, no ano seguinte, e destituí-la, meses depois, conseguiu em 2011 que ela fosse condenada à prisão por abuso de poder.) A sua referência, como a de seus equivalentes poloneses, é o Ocidente. Eis por que, nas últimas duas semanas, se ergueu uma onda de protestos contra o governo -culminando com a mega manifestação de domingo em Kiev pela renúncia de Yanukovich. Atos públicos ocorreram também em outras cidades. A revolta começou quando Yanukovich, sob intensa pressão do russo Vladimir Putin -na realidade a combinação de chicote e afago que ele maneja com maestria -, desistiu a enésima hora de assinar com a União Europeia (UE) um acordo de livre-comércio e associação, concluído na semana anterior em Vilnius, Lituânia. O documento abria caminho para a Ucrânia se tornar mais adiante o 29.0 membro do bloco. Se isso é literalmente inconcebível para Putin, tampouco tem em Yanukovich um entusiasta. As reformas democráticas, a independência do Judiciário e o combate à corrupção que a inclusão exigiria ameaçariam o proveitoso contubérnio entre a elite política e os oligarcas locais, que rivalizam com os russos em matéria de fortunas ilícitas, ligações com as mafiyas e ostentação nababesca. Putin exige que a Ucrânia imite a Armênia, que em setembro parou de negociar a criação de vínculos com a UE e anunciou que irá aderir ao bloco eurasiático - a união aduaneira, liderada pela Rússia, das ex-repúblicas soviéticas Belarus e Casaquistão. O autocrata russo, com a costumeira retórica desabrida, comparou os protestos a um pogrom - as violências contra minorias étnicas, que dizimavam notadamente as populações judaicas das aldeias russas e do Leste europeu em geral, não raro com a conivência dos governantes. Yanukovich, aparecendo com estudada desconcentração numa entrevista aos principais canais de TV do país, falou como se nada de anormal houvesse nas ruas, confirmou a viagem a Pequim marcada para hoje e anunciou mais investimentos em infraestrutura. A reação na Europa à maior crise política da Ucrânia em quase 10 anos foi curiosa. Do Mediterrâneo ao Báltico não houve comentarista que não se apressasse a dizer, ironicamente, que a Ucrânia é o único país da região em que a UE é popular. Os chefes de governo do bloco, a exemplo da chanceler alemã Angela Merkel, limitaram-se a pedir a Yanukovich que evitasse novos derramamentos de sangue. No sábado, as forças de segurança haviam investido com ferocidade contra os ativistas desarmados. Para deixar claro o descontentamento de Washington com o afastamento da Ucrânia da UE, o secretário de Estado John Kerry cancelou a visita que faria esta semana ao país. Mas nem os europeus nem os americanos ignoram a "barreira estrutural" que separa Kiev de Bruxelas, a sede da União. Economicamente, quanto mais não seja, a Ucrânia é um satélite da Rússia. Isso, não obstante o seu amplo território de 603,6 mil quilômetros quadrados (maior do que Minas Gerais, por exemplo) e a sua condição de grande produtor de grãos, açúcar e minerais não ferrosos, com ampla base industrial e população qualificada. Mas Yanukovich e o seu antecessor Leonid Kuchma travaram o país. |
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