quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

‘O povo não vai se cansar de protestar’

Manuel Castells: ‘O povo não vai se cansar de protestar’

O Globo 29/06/2013


Sociólogo afirma que ausência de líderes é uma das qualidades dos protestos no Brasil e diz que país vai influenciar países vizinhos

Para o sociólogo catalão Manuel Castells, boa parte dos políticos é de “burocratas preguiçosos”. Ele é um dos pensadores mais influentes do mundo, com suas análises sobre os efeitos da tecnologia na economia, na cultura e, principalmente, no ativismo. Conhecido por sua língua afiada, o espanhol falou ao GLOBO por e-mail sobre os protestos.
Os protestos no Brasil não tinham líderes. Isso é uma qualidade ou um defeito?
Claro que é uma qualidade. Não há cabeças para serem cortadas. Assim, as redes se espalham e alcançam novos espaços na internet e nas ruas. Não se trata, apenas, de redes na internet, mas redes presenciais.
Como conseguir interlocução com as instituições sem líderes?
Eles apresentam suas demandas no espaço público, e cabe às instituições estabelecer o diálogo. Uma comissão pode até ser eleita para encontrar o presidente, mas não líderes.
Como explicar os protestos?
É um movimento contra a corrupção e a arrogância dos políticos, em defesa da dignidade e dos direitos humanos — aí incluído o transporte. Os movimentos recentes colocam a dignidade e a democracia como meta, mais do que o combate à pobreza. É um protesto democrático e moral, como a maioria dos outros recentes.
Por que o senhor disse que os protestos brasileiros são um “ponto de inflexão”?
É a primeira vez que os brasileiros se manifestam fora dos canais tradicionais, como partidos e sindicatos. As pessoas cobram soberania política. É um movimento contra o monopólio do poder por parte de partidos altamente burocratizados. É, ainda, uma manifestação contra o crescimento econômico que não cuida da qualidade de vida nas cidades. No caso, o tema foi o transporte. Eles são contra a ideia do crescimento pelo crescimento, o mantra do neodesenvolvimentismo da América Latina, seja de direita, seja de esquerda. Como o Brasil costuma criar tendências, estamos em um ponto de inflexão não só para ele e o continente. A ideologia do crescimento, como solução para os problemas sociais, foi desmistificada.
O que costuma mover esses protestos?
O ultraje, causado pela desatenção dos políticos e burocratas do governo pelos problemas e desejos de seus cidadãos, que os elegem e pagam seus salários. O principal é que milhares de cidadãos se sentem fortalecidos agora.
O senhor acha que eles podem ter sucesso sem uma pauta bem definida de pedidos?
Acho inacreditável. Além de passarem por uma série de problemas urbanos, ainda se exige que eles façam o trabalho de profissional que deveria ser dos burocratas preguiçosos responsáveis pela bagunça nos serviços. Os cidadãos só apontam os problemas. Resolvê-los é trabalho para os políticos e técnicos pagos por eles para fazê-lo.
Com organização horizontal, esse movimento pode durar?
Vai durar para sempre na internet e na mente da população. E continuará nas ruas até que exigências sejam satisfeitas, enquanto os políticos tentarem ignorar o movimento, na esperança que o povo se canse. Ele não vai se cansar. No máximo, vai mudar a forma de protestar.
Outra característica dos protestos eram bandeiras à esquerda e à direita do espectro político. Como isso é possível?
O espaço público reúne a sociedade em sua diversidade. A direita, a esquerda, os malucos, os sonhadores, os realistas, os ativistas, os piadistas, os revoltados — todo mundo. Anormal seriam legiões em ordem, organizadas por uma única bandeira e lideradas por burocratas partidários. É o caos criativo, não a ordem preestabelecida.
Há uma crise da democracia representativa?
Claro que há. A maior parte dos cidadãos do mundo não se sente representada por seu governo e parlamento. Partidos são universalmente desprezados pela maioria das pessoas. A culpa é dos políticos. Eles acreditam que seus cargos lhes pertencem, esquecendo que são pagos pelo povo. Boa parte, ainda que não a maioria, é corrupta, e as campanhas costumam ser financiadas ilegalmente no mundo inteiro. Democracia não é só votar de quatro em quatro anos nas bases de uma lei eleitoral trapaceira. As eleições viraram um mercado político, e o espaço público só é usado para debate nelas. O desejo de participação não é bem-vindo, e as redes sociais são vistas com desconfiança pelo establishment político.
O senhor vê algo em comum entre os protestos no Brasil e na Turquia?
Sim, a deterioração da qualidade de vida urbana sob o crescimento econômico irrestrito, que não dá atenção à vida dos cidadãos. Especuladores imobiliários e burocratas, normalmente corruptos, são os inimigos nos dois casos.
Protestos convocados pela internet nunca tinham reunido tantas pessoas no Brasil. Qual a diferença entre a convocação que funciona e a que não tem sucesso?
O meio não é a mensagem. Tudo depende do impacto que uma mensagem tem na consciência de muitas pessoas. As mídias sociais só permitem a distribuição viral de qualquer mensagem e o acompanhamento da ação coletiva.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Entenda os protestos na Venezuela

Entenda os protestos na Venezuela

País deve ser palco de novas manifestações, que têm como pano de fundo problemas econômicos e de violência urbana instrumentalizados por alas da oposição
Carta Capital
por Redação — publicado 18/02/2014 

Os atuais protestos que ocorrem na Venezuela estão inseridos em um contexto mais amplo de manifestações. Ainda em 2013, logo após a estreita vitória do chavista Nicolás Maduro na eleição presidencial, grupos simpáticos ao opositor Henrique Capriles Radonski foram às ruas contra o presidente recém-eleito, pedindo uma recontagem dos votos. Naquela ocasião, as manifestações deixaram oito mortos, entre opositores e simpatizantes do governo.
No início de fevereiro, estudantes em San Cristóbal, no estado de Táchira, protestaram contra a falta de segurança nos campi universitários depois que uma jovem sofreu uma tentativa de estupro. Os protestos se alastraram por outras cidades incorporando novas demandas, como os problemas econômicos e o apelo pela soltura de estudantes detidos em manifestações anteriores. Somado a isso, um ala mais radical da coalizão Mesa da Unidade Democrática (MUD), encabeçada pelos opositores Leopoldo López, Maria Corina Machado e Antonio Ledesma, incorporaram-se às manifestações, exigindo “La Salida” de Maduro do poder.
Saiba mais sobre os protestos na Venezuela:
O que aconteceu no dia 12 de fevereiro?
Na data em que se comemora o Dia da Juventude no país, os protestos, que até então tinham apresentado incidentes violentos isolados, atingiriam um novo patamar. As manifestações contra e a favor do governo terminaram com um saldo de três mortos após violentos confrontos nas ruas. Duas pessoas foram mortas por tiros em Caracas, um estudante e um simpatizante do governo. Uma terceira faleceu em um tiroteio relacionado a uma manifestação no município de Chacao.
Diante desse quadro, o governo e a oposição trocam acusações. Representantes da gestão Maduro culpam “pequenos grupos fascistas” de estarem infiltrados nos protestos opositores. Já estes culpam militantes armados pró-governo de atacar seus protestos nos últimos anos.
Quem são os manifestantes?
Não é possível definir um grupo homogêneo, ligado a um partido específico, com uma demanda clara. Em geral, o participante dos protestos contra Maduro vem de setores da sociedade insatisfeitos com as políticas econômicas e de segurança pública do atual governo.
São majoritariamente estudantes universitários e do segundo grau de classe média, grupo que sempre representou uma forte oposição ao governo, desde Hugo Chávez. Apesar de estarem todos sob a inscrição de “oposição”, há uma parcela contrária a Maduro que não necessariamente se identifica com a ala mais radical da MUD.
Uma ala mais moderada – cujo representante mais conhecido é Henrique Capriles – rechaça a “opressão do governo”, mas também é contrária a manifestações violentas e defende que, no momento, não há condições de pressionar pela saída de Maduro do poder.
O desempenho econômico e a violência urbana são as principais causas?
Segundo o venezuelano Rafael Villa, professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo, os problemas econômicos e de violência urbana provocam insatisfações em alguns setores da sociedade, mas estão sendo fortemente instrumentalizados com fins políticos. O país apresentou em 2013 uma inflação que chegou a 56,2% e há a escassez de produtos básicos como leite, açúcar e papel higiênico. Somado a isso, o país vem sofrendo com apagões de energia elétrica.
Em relação à violência, desde 2003 não há uma cifra oficial sobre o número de homicídios na Venezuela. De acordo com a ONG Observatório Venezuelano de Violência (OVV), o país encerrou 2013 com uma taxa de 24.763 mortes violentas, 79 mortos para cada 100 mil habitantes. "De fato, a violência, a falta de segurança pública existe. É um problema possível de se vivenciar no dia a dia”, afirma Villa. “Mas também é verdade que essa questão tem sido politizada, usada pela oposição. E não há nada estranho nisso. É uma das fraquezas da administração chavista, então é claro que a oposição não vai deixar de explorar.”
Outro aspecto ressaltado por Villa é que a vitória do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) em 77% das cidades nas eleições municipais de dezembro fortaleceu Maduro, que estava fragilizado desde as eleições presidenciais, quando ele teve uma vitória apertada sobre Capriles. “De alguma maneira, esses protestos, com uma clara intervenção da oposição, procuram recuperar esse contexto político de fraqueza, de fragilidade do governo. Mais que os problemas econômicos e de violência é isso que está em jogo.”
Qual é o papel de Leopoldo López?
Leopoldo López é fundador do partido Voluntad Popular e integra a ala mais radical da Mesa da Unidade Democrática (MUD), grupo opositor ao chavismo. Um dos políticos que encabeça o lema "La Salida" contra Maduro, López foi estudante de economia em Harvard e prefeito de Chacao, na região metropolitana de Caracas.
Em 2008, foi impedido pela Justiça de exercer cargos públicos após ter sido acusado de receber recursos da companhia de petróleo da Venezuela, a PDVSA – cuja gerência na época era ocupada por sua mãe, Antonieta Mendoza –, para fundar o partido opositor Primeira Justiça. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos teve um entendimento em seu favor, mas o governo manteve a condenação.
Segundo Villa, López tem mais peso político fora do que dentro da Venezuela. “Ele não tem um papel muito importante. Não tem um partido forte por trás dele e não tem base social”, afirmou. Para o professor, o político usa os protestos como uma tentativa de intensificar os conflitos sociais na Venezuela e se beneficiar. “Mas não é alguém que possa colocar em xeque o governo.”
Por outro lado, o professor afirma que Maduro se mostra “pouco habilidoso” ao lidar com López. Nesta semana, o governo mandou revistar a casa dos pais do opositor e a sede do seu partido, além de decretar ordem de prisão contra ele, sob a acusação de ele ser o responsável pelas três mortes nos protestos.
Qual é a posição do Brasil diante da situação da Venezuela?
Através de sua assessoria de imprensa, o Itamaraty informou que corrobora as notas emitidas pelo Mercosul e pela Unasul em relação à tensão no país. O texto do Mercosul fala de "tentativas de desestabilizar a ordem democrática" e rechaça "as ações criminais dos grupos violentos que querem disseminar a intolerância e o ódio na República Bolivariana da Venezuela como instrumento de luta política". “(O Mercosul) expressa seu mais firme rechaço às ameaças de ruptura da ordem democrática" e insta as partes a continuar o diálogo "no marco da institucionalidade democrática e do estado de direito, tal como promovido pelo presidente Nicolás Maduro". Já a Unasul defendeu a "preservação da institucionalidade", a "defesa da ordem democrática" e a necessidade de convicções serem expressadas pela "via democrática".
E a posição dos EUA?
Em comunicado, o secretário de Estado do país, John Kerry, manifestou "profunda preocupação" com a situação da Venezuela e condenou a violência dos protestos. "Estamos particularmente alarmados pelos informes que o governo venezuelano deteve ou tem detido dezenas de manifestantes opositores e pela emissão de uma ordem de detenção contra o líder opositor Leopoldo López", disse.
O Departamento de Estado também classificou como "falsas e sem fundamento" as acusações de que os EUA estariam colaborando com os protestos contra o governo de Maduro. "Apoiamos os direitos humanos e as liberdades fundamentais --incluindo a liberdade de expressão e o direito de reunião – na Venezuela e em todos os países do mundo. Mas, como temos dito há muito tempo, corresponde ao povo venezuelano decidir o futuro político da Venezuela", disse a porta-voz Jen Psaki.

Qual é o futuro da Ucrânia?

Qual é o futuro da Ucrânia?

Para ter estabilidade a longo prazo o país precisa de um acordo de união nacional, ou deve começar a cogitar uma divisão política. 
Carta Capital
Por José Antonio Lima

A legitimidade do presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, foi novamente minada nesta quinta-feira 20. O caos se ampliou em Kiev, a capital do país, devido aos confrontos entre forças de segurança e manifestantes que, há três meses, protestam contra o desejo do governo de aproximar a Ucrânia da Rússia. Segundo números oficiais, 39 pessoas morreram nesta quinta, muitas assassinadas por atiradores de elite, levando o total de vítimas fatais para 67 nos últimos três dias. Yanukovych decidiu fazer um jogo duplo. Ao mesmo tempo em que indica a possibilidade de convocar o Exército e ampliar a repressão, reabre negociações com a oposição. Dificilmente a estratégia terá sucesso. No curto prazo, a Ucrânia deve precisar de um governo de transição, sem Yanukovych, para evitar uma guerra civil. No médio e longo prazos, o país precisa considerar soluções mais difíceis para obter estabilidade.
Os problemas atuais do povo ucraniano têm raízes históricas antigas. A Ucrânia é fruto da reorganização geopolítica realizada ao fim da Primeira Guerra Mundial. Encerrado aquele conflito, um pedaço do Império Austro-Húngaro foi unido a um território do Império Russo e o resultado foi um Estado fraco na fronteira entre a Europa e a Rússia. Os habitantes das duas áreas eram bastante diferentes e até hoje o contraste é claro. No sul e no leste da Ucrânia, redutos eleitorais de Yanukovych, predominam a língua e a etnia russas, enquanto no norte e no oeste, onde a oposição tem mais votos, a língua e a etnia são ucranianas.
Ao longo do século XX, essas diferenças foram suprimidas pela formação da União Soviética e a brutal e sanguinária repressão imposta por Moscou. Em diversas oportunidades, o lado “ucraniano” da Ucrânia se insurgiu contra a influência russa, sempre em batalhas ferozes, mas nunca vitoriosas. O fim da União Soviética, e a consequente independência da Ucrânia, trouxeram os contrastes internos de volta à tona. Um fator externo, entretanto, serviria para transformar a dualidade de identidades da Ucrânia em um barril de pólvora.
Para os Estados Unidos e a União Europeia, o fim da União Soviética foi uma oportunidade de encurralar a Rússia. Este processo se deu por meio de duas entidades internacionais, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a própria UE. Em 1999, Hungria, Polônia e República Tcheca, todos ex-membros do Pacto de Varsóvia, entraram na Otan. Em 2004, foi a vez de Bulgária, Eslovênia, Eslováquia, Estônia, Letônia, Lituânia e Romênia. Da mesma forma, países da Europa Oriental “migraram” para a União Europeia na última década. Em 2004, foi a vez de Estônia, Eslováquia, Eslovênia, Hungria, Letônia, Lituânia e Polônia. Em 2007, a de Bulgária e Romênia.
O resultado desse processo foi a chegada das fronteiras militares e econômicas do “Ocidente” às portas de Moscou, uma ameaça estratégica intolerável para a Rússia. Da antiga área de influência soviética só restam Bielorrússia, uma ditadura sustentada pela Rússia, e a Ucrânia, dividida entre a Europa e Moscou.
Para o Ocidente, tirar a Kiev da esfera de influência da Rússia de Vladimir Putin seria um trunfo e tanto. Ocorre que a cartada máxima nesse jogo, a integração completa à União Europeia, não pode ser usada agora. A Ucrânia é um país pobre, de 45 milhões de pessoas, que não poderiam ser absorvidas imediatamente por França, Alemanha e outros países sem causar instabilidade. Assim, a UE tenta atrair a Ucrânia de outras formas, como acordos comerciais. Em novembro, um deles quase foi assinado, mas a recusa de Viktor Yanukovych de confirmar a negociação, sob pressão da Rússia, fez explodir os atuais protestos contra ele.
Para a Rússia, a Ucrânia é um trunfo muito mais importante do que para a União Europeia. Pelas terras ucranianas Moscou envia seu gás natural para a Europa e tem acesso às águas quentes do Mar Negro. Também é no Mar Negro, no território ucraniano da Crimeia, que está uma das mais importantes frotas navais de Moscou. A saída da Ucrânia da esfera de influência russa, assim, é encarada quase que como uma questão existencial por Moscou.
O que não se sabe ainda é até onde está disposto a ir o presidente da Rússia, Vladimir Putin, para garantir influência sobre a Ucrânia. Yanukovych pode transformar o país em uma ditadura ao aumentar ainda mais repressão, ou levar a Ucrânia a uma guerra civil. Ambos cenários são de instabilidade, e aparentemente não desejáveis pela Rússia. Como Estados Unidos e União Europeia também não têm interesse em um cenário caótico, a formação de algum tipo de governo de transição pode ser a solução a curto prazo.
Ocorre que a realização de novas eleições, hoje programadas para 2015, vai simplesmente reabrir as feridas mais para frente caso a Ucrânia continue se dividindo e sendo disputada entre a Rússia e o Ocidente. Diante disso, o país precisa de uma solução de longo prazo, e ela não será nada fácil. Uma possibilidade é um acordo nacional, com concessões de lado a lado, que permita ao país conviver com as potências internacionais sem se conflagrar a cada crise. Caso isso não seja possível, talvez a Ucrânia deva pensar em uma solução mais insólita e radical: se dividir em dois países para que cada um possa seguir seu rumo em paz.

Ucrânia: golpe ou revolução?

Ucrânia: golpe ou revolução?

A queda do governo Yanukovych é só a primeira fase de uma atribulada transição na Ucrânia
por José Antonio Lima — publicado 24/02/2014 

Afastado Viktor Yanukovych da presidência da Ucrânia, há uma disputa em curso a respeito da natureza do movimento político que produziu sua saída. Alguns veículos da imprensa ocidental, como as revistas Time e The New Republic, adotaram o termo "revolução", enquanto o próprio Yanukovych e seus patronos russos falam em "golpe". A rigor, a queda do presidente ucraniano se aproxima mais a um golpe, mas isso não significa que o desfecho não pode ser positivo.
Quando se trata dos termos "revolução" e "golpe", a conotação das palavras conta mais que seu sentido denotativo. Revolução tem um forte sentido positivo, pois geralmente elas são realizadas contra regimes autoritários e, portanto, indicariam o caminho do "bem", da democracia. Os golpes, ao contrário, têm sentido negativo, pois trazem à mente rompimentos da ordem democrática, geralmente provocados por militares com o apoio de setores civis.
Toda essa conotação, entretanto, é motivada politicamente. Há exemplos tanto de revoluções negativas quanto de golpes positivos. A Revolução Russa, por exemplo, derrubou o cruel czarismo, mas implantou o comunismo autoritário; a Revolução Iraniana derrubou a terrível ditadura do xá Reza Pahlevi, mas em seu lugar deixou um regime híbrido de teocracia e democracia controlada.
Do lado do "golpismo" também há exceções. A hoje chamada Revolução dos Cravos de Portugal, que deu origem ao atual período democrático português, foi iniciada, na realidade, com um golpe militar contra o autoritarismo do Estado Novo que vigorava então. No Egito, o golpe palaciano dos militares contra Hosni Mubarak abriu espaço para a democracia que elegeu Mohamed Morsi (apesar de tal período ter sido interrompido no ano passado com outro golpe).
Revolução e golpe são termos intrínsecos à política e, sendo assim, é praticamente impossível evitar a politização de ambos. Para entender os eventos, entretanto, é preciso recorrer a um mínimo de rigor acadêmico.
H.M. Hyndman e outros autores definem revolução como uma mudança completa na ordem social, um movimento que traz impactos não só políticos como econômicos e religiosos, exatamente como nas revoluções russa e iraniana. O golpe é mais fácil de identificar. Pela definição Charles Sampford, o golpe ocorre "quando os militares ou uma parte das Forças Armadas volta seu poder coercitivo contra o cume do Estado, se estabelece lá, e o resto do Estado recebe ordens do novo regime". Cabe nesta definição, por exemplo, o golpe de 1964 no Brasil contra João Goulart.
O que ocorreu com Yanukovych na Ucrânia, assim, não é nem de longe uma revolução, mas também não chega a ser um golpe completo.
Seu caso é mais parecido com o golpe que derrubou Manuel Zelaya em Honduras, em 2009. Naquela oportunidade, os militares tinham interesse em se ver livres do então presidente e intervieram de forma pontual, tirando Zelaya do poder e enviando-o (de pijamas) para a Costa Rica. Nos momentos seguintes, entregaram o comando da situação aos civis.
No caso ucraniano, os militares intervieram ao não intervir. Ao garantirem neutralidade, abriram o caminho para a saída de Yanukovych que, por conta da intransigência e da extrema brutalidade empregada contra os manifestantes, havia virado o alvo primordial dos protestos, a ponto de ser abandonado por seus correligionários do Partido das Regiões. Com a certeza de que as Forças Armadas não se mexeriam, manifestantes tomaram prédios do governo e a residência oficial em Kiev. Nas horas seguintes, o Congresso convenientemente aprovou o impeachment de Yanukovich, legalizando o "quase golpe".
A transição para um novo governo, que deve ser eleito em 25 de maio, não servirá, entretanto, para colocar fim à crise na Ucrânia. O país, dividido entre a Europa e a Rússia, vive uma crise de identidade que exige soluções de longo prazo. Enquanto as regiões oeste e norte, onde predominam a etnia e a língua ucranianas, desejam se aproximar da União Europeia, o leste e o sul do país buscam aliança com a Rússia, com a qual têm mais afinidade. Diante da derrubada de Yanukovych, que deu início à crise ao recusar, sob pressão de Moscou, um acordo comercial com a União Europeia, há crescente insatisfação na região leste da Ucrânia e, na Crimea, província ao Sul, cresce o sentimento de separatismo. Mais que um golpe ou uma revolução, a Ucrânia precisa de um estadista corajoso e disposto a manter a integridade da nação, o que certamente exigirá concessões de lado a lado e, talvez, o rompimento da integridade territorial da Ucrânia atual. Não será nada fácil.

Fortalecimento da agricultura familiar na Amazônia?

Fortalecimento da agricultura familiar na Amazônia?
As fantásticas oportunidades propiciadas pelas riquezas naturais da Amazônia caíram como uma luva na agenda desenvolvimentista do governo central. Nesse projeto, os agricultores familiares participam nas franjas, quando integrados aos grandes empreendimentos capitalistas de agroenergias e commodities agropecuárias
por Gerson Teixeira
(Homem navega em rio da Amazônia, região definida como fronteira energética do país com base na hidreletricidade)
Entendemos como agricultores familiares na Amazônia aqueles com traços sociais constitutivos do campesinato em seus termos clássicos, que mantêm condutas econômicas por vezes influenciadas por fatores estranhos à racionalidade capitalista, pautadas nas interaçõesentre economia, tradições e meio natural, com a dominância do trabalho da família no processo produtivo. Eles são um amplo mosaico social de agricultores na Amazônia, internamente diferenciados pelas origens e pelos graus de inserção nos mercados e de integração com a natureza.
O último Censo Agropecuário do IBGE, de 2006, identificou cerca de 700 mil estabelecimentos familiares (86% do total) ocupando uma área de 25,4 milhões de hectares (22% da área total dos estabelecimentos). Os estabelecimentos familiares na Amazônia correspondiam naquela data a 16% e 32%, respectivamente, do número e área dos estabelecimentos familiares do Brasil.
Admite-se que esses agricultores resistem, sobrevivem, residualmente prosperem, num ambiente de gigantescos e seculares contrastes e iniquidades, não superados até a presente data; pelo contrário.De um lado, convivem em um ambiente de fabulosas riquezas naturais distribuídas num vasto território de 514 milhões de hectares. De outro, enfrentam cada vez mais restrições ao acesso a essas riquezas, incluindo a terra.
Particularmente desde meados da década passada,a Amazônia passou a ser alvo de vultosos fluxos de capital,produtivo e especulativo,atraídos pelas potencialidades da região no suprimento dos aquecidos mercados de commodities agropecuárias, florestais,e minerais.
O impulso predatórioda expansão desses empreendimentos associado aos vazamentos da renda líquida regional típicos dos ciclos econômicos do passado seriam enfrentados: (i) pela consolidação da democracia no país com desdobramentos no fortalecimento da consciência ambiental; e (ii) pelopapel estratégico internacionalmente creditado à floresta amazônica para o enfrentamento dosdesafios sistêmicos globais. Incluem-se nesses desafios: o quadro das mudanças climáticas, a preservação da biodiversidade e, de modo subjacente, a funcionalidade da região aos esforços pela garantia da segurança alimentar.
Esses argumentos não impediram a prevalência da agenda do neodesenvolvimentismo em curso, o que tem resultado na expansão acelerada dos grandes projetos agropecuários, florestais e minerais, para o que colabora enormemente o quadro de frouxidão regulatória em torno da ocupação territorial pelo agronegócio,como atestam a recente aprovação do novo Código Florestal e a persistência da inexistência prática de limites e controles na posse da terra por pessoas estrangeiras.
A Amazônia também foi definida como a grande fronteira energética do país com base na hidreletricidade. Os profundos impactos negativos desses projetos nos planos ambiental, social, econômico e cultural desarticulam vastos segmentos da agricultura familiar e outros grupos sociais sensíveis.
Mesmo ações recentes de proteção ambiental, como cotas de reserva legal e títulos de carbono, se destacam muito mais por constituírem ativos de atrativos mercados com repercussões de monta sobre a estrutura fundiária e sobre o controle pelo capital externo dos recursos naturais de modo geral.
As fantásticas oportunidades propiciadas pelas riquezas naturais da Amazônia, nos planos interno e externo, caíram como uma luva na agenda desenvolvimentista do governo central. Nesse projeto, os agricultores familiares participam nas franjas, quando integrados aos grandes empreendimentos capitalistas de agroenergias e commodities agropecuárias.
Nas circunstâncias recentes de restauração e consolidação da democracia, não caberiamais a escala das permissividades do projeto levado a cabo no passado, em especial pelos governos militares com a Operação Amazônia da década de 1970. Mas as bases e a ambição do atual projeto de integração profunda da Amazônia à economia global nem de longe encontram similares na história da Amazônia desde as políticas de integração.
Em termos sintéticos, a dimensão rural da estratégia regional busca, entre outros pontos, asegurança jurídica na posse da terra para os empreendimentos capitalistas, o que vem sendo perseguido com o Programa Terra Legal (Lei n.11.952/2009), em que pese sua versão final menos ousada em relação à proposta original graças às ações dos movimentos sociais. Consta que está em estudo no governo a recuperação do texto original. Pretende-se também a flexibilização da legislação ambiental, o que em grande parte foi obtido com a aprovação do novo Código Florestal.
Para ampliar a competitividade nos mercados asiáticos das commodities há a convergência das obras rodoviárias do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) com as da Iniciativa para a Integração daInfraestrutura Regional Sul-Americana(IIRSA), para possibilitar a saída pelo Pacífico, principalmente via Peru.
Abandono da produção dos alimentos básicos
Sob esse forte cerco do capital pelo controle da floresta e do carbono, da água, dos minérios; enfim, do território, deve ser feita a reflexão sobre o eventual fortalecimento da agricultura familiar na Amazônia.
Na região Norte, o Censo Agropecuário de 2006 revelou indicadores socioeconômicos da agricultura de base familiar na Amazônia que suplantavam os da agricultura não familiar. Em 2006, o valor das receitas obtidas pelos estabelecimentos agropecuários com produtos vegetais (Norte) foi de R$ 3 bilhões. Desse total, a agricultura familiar participou com 60%.
Do conjunto das atividades agrícolas e não agrícolas processadas no interior dos estabelecimentos agropecuários da região Norte, a agricultura familiar, no quesito geração de renda, só não liderou na atividade do turismo rural. Tomando toda a Amazônia Legal, os estabelecimentos familiares respondiam por 82% do total de 3 milhões de pessoas ocupadas na atividade agropecuária regional. No Brasil, essa proporção em 2006 foi de 74%.
Em aparente contraste com as adversidades da realidade antes descrita, as políticas de transferência de renda e de fomento produtivo, notadamente o crédito e as compras institucionais, colocadas em práticas desde 2003, tenderiam a amenizar o severo quadro que pressiona a agricultura familiar na Amazônia. Na verdade, se apresentam como contrapartida para a miniaturização do programa de reforma agrária em nome da garantia da governabilidade.
Quanto ao fomento produtivo, a oferta de recursos para o crédito rural na Amazônia aumentou de forma expressiva. De acordo com o Banco Central, em 2002 os financiamentos para os agricultores familiares na Amazônia via Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) envolveram 73 mil contratos e o valor de R$ 280 milhões. Em 2012, o número de contratos saltou para 184 mil, mobilizando R$ 2 bilhões. Foram desenvolvidos mercados institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que têm crescido de forma continuada, em que pese suas escalas relativamente ainda pouco significativasvis-à-vis o universo dos agricultores familiares na Amazônia. Junto com outras ações federais na área da comercialização e da recuperação dos serviços de assistência técnica, tais medidas geram impactos positivos na economia camponesa em geral.
Contudo, ante a impossibilidade de uma avaliação mais consistente da evolução recente da economia agrícola de base familiar, é possível pinçar alguns indícios preocupantes, de cunho qualitativo.
Primeiro, cumpre destacar, no caso do financiamento produtivo, que ele tem atendido também a demandas de empresários que não se enquadram no critério de pertencer à agricultura familiar. O potencial econômico degenerativo do elevado grau do endividamento desses agricultores junto ao Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO) vem sendo administrado por medidas de repactuações sucessivas. Os dados mais recentes (out. 2011) mostram que, na área de abrangência do FNO, o saldo das dívidas rurais alcançava R$ 19,5 bilhões, dos quais mais de R$ 13 bilhões já haviam sido lançados como prejuízo de acordo com dados do Ministério da Fazenda.
Segundo, a exemplo do fenômeno observado no plano nacional, o crédito, incluindo o programa Mais Alimentos, que financia máquinas, está concebido para servir de vetor do processo de modernização conservadora da agricultura familiar na Amazônia.
Há a indução da replicagem, no universo ainda não “modernizado” desse segmento, dos padrões de organização e gestão da agricultura do agronegócio, o que passa pela disseminação da matriz tecnológica da “revolução verde”. É a modernização conservadora tardia da agricultura familiar.
O que reputo particularmente preocupante do resultado desse esforço de enquadramento da economia camponesa na região à dinâmica do agronegócio tem sido o progressivo abandono, por essas pequenas unidades produtivas, da produção dos alimentos básicos da dieta da população. Exceto na área amazônica do Maranhão, o número de contratos de custeio de arroz, feijão e mandioca na região, com recursos do Pronaf, declinou 57% de 2002 para 2012, conforme dados do Banco Central.
Uma tendência está estabelecida: o enfraquecimento do protagonismo desse segmento na produção de alimentos básicos, o que desde sempre tem sido o atributo político distintivo do papel social da agricultura familiar. Trata-se de um processo que se manifesta em nível nacional, o que explica a pressão dos preços dos alimentos no atual repique do processo inflacionário no Brasil.

Gerson Teixeira
Presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).


Ilustração: Cordel Imagem / Sambaphoto

Os caminhos inesperados de Mandela

O HOMEM TORNA-SE ÍCONE
Os caminhos inesperados de Mandela
Seu nome, entoado nos cinco continentes, é sinônimo de resistência, libertação, universalidade. Lutador obstinado e esperto, Nelson Mandela não existe mais. Porém, a mera ideia de que as pessoas se lamentassem ao pé de sua estátua o exasperava: é necessário ir em frente, dizia, e continuar na tarefa da emancipação
por Achille Mbembe
Agora que Nelson Mandela se foi, temos o direito de declarar o fim do século XX, do qual ele terá sido uma das figuras mais emblemáticas. Exceção feita a Fidel Castro, ele era talvez o último de uma linhagem de grandes homens condenada à extinção, numa época que tem pressa em acabar de uma vez por todas com os mitos.
Se é preciso conceder a Mandela a recusa da santidade que ele não cessava de rejeitar, devemos reconhecer também que ele estava longe de ser um homem comum. Oapartheidprovocou o surgimento de uma classe de mulheres e de homens sem medo que, ao preço de sacrifícios incríveis, precipitaram sua abolição. Se, de todos, Mandela tornou-se o nome, foi porque a cada encruzilhada em sua vida ele se mostrou capaz de adotar, às vezes sob a pressão das circunstâncias e muitas vezes voluntariamente, caminhos inesperados.
Sua vida vai ser resumida em poucas palavras: um homem sempre à procura, sentinela da partida e cujos retornos, tão inesperados quanto milagrosos, apenas terão contribuído ainda mais para sua mitificação.
Na base do mito não se encontram apenas o desejo do sagrado e a sede do secreto. Ele floresce pela primeira vez na proximidade da morte, essa primeira forma de partida e afastamento. Bem cedo, Mandela teve uma experiência assim, quando seu pai, Mphakanyiswa Gadla Mandela, morreu quase diante de seus olhos. Essa primeira partida precipitou outra. Acompanhado de sua mãe, o jovem Mandela deixou Qunu, o lugar de sua infância e dos primórdios de sua adolescência. Ele voltaria a se estabelecer ali depois de seus longos anos de prisão, após ter construído no local uma casa, réplica com todos os detalhes da última prisão onde ficou encarcerado pouco antes de sua libertação.
Recusando-se a se conformar com os costumes, Mandela partiria uma segunda vez no final da adolescência. Príncipe fugitivo, virou as costas para uma carreira junto ao chefe dos Thembus, seu clã de origem. Seguiu para Johannesburgo, cidade voltada à mineração, em pleno crescimento, e lugar das contradições sociais, culturais e políticas geradas por essa montagem barroca de capitalismo e racismo que assumiria em 1948 a forma e o nome de apartheid. Chamado a se tornar um líder na ordem vigente, Mandela se converteria ao nacionalismo como outros a uma religião, e a cidade das minas de ouro se tornaria o palco principal do encontro com seu destino.
Começou então uma via crucis longa e dolorosa, feita de privações, prisões constantes, perseguições intempestivas, vários comparecimentos diante dos tribunais, estadas regulares nos presídios com seu rosário de torturas e seus rituais de humilhação, períodos mais ou menos prolongados de vida clandestina, inversão dos mundos diurno e noturno, disfarces mais ou menos espontâneos, uma vida familiar dispersa, moradias abandonadas – o homem em luta, rastreado, o fugitivo constantemente de partida, guiado apenas pela convicção de um dia futuro, o dia do retorno.
De fato, Mandela assumiu riscos enormes. Com a própria vida, que ele viveu intensamente, como se tudo fosse recomeçar a cada vez e como se cada vez fosse a última. Mas também com a de muitos outros, a começar por sua família, que, consequência inevitável, pagou um preço inestimável pelos compromissos e convicções dele. Ela o vinculava por isso a uma dívida insondável que ele sempre soube não estar em condições de compensar, o que só fez agravar seus sentimentos de culpa.
Mandela evitou por pouco a pena de morte. Foi em 1964. Estava preparado para ser condenado. “Se tínhamos de desaparecer, melhor fazê-lo em meio a uma nuvem de glória. Ficávamos satisfeitos de saber que a morte representaria nossa última oferta ao nosso povo e à nossa organização.”1 Essa visão eucarística, no entanto, estava isenta de qualquer desejo de martírio. E, ao contrário de todos os outros, de Ruben Um Nyobè a Patrice Lumumba, passando por Amílcar Cabral, Martin Luther King até Mohandas Karamchand Gandhi, ele escaparia à foice.
Resto de humanidade
Foi na prisão de Robben Island que ele teve realmente a experiência desse desejo de vida, no limite do trabalho forçado, da morte e do banimento. A prisão se tornaria o local de uma prova extrema, a do confinamento e do retorno do homem à sua mais simples expressão. Nesse lugar de privação máxima, Mandela aprendeu a viver na cela na qual passaria mais de vinte anos como se fosse um sobrevivente forçado a se casar com um caixão.2
Durante longas e terríveis horas de solidão, levado à beira da loucura, ele redescobriria o essencial, aquele que jaz no silêncio e no detalhe. Tudo lhe falaria do novo: uma formiga que corre não se sabe onde; a semente enterrada que morre e depois se recupera, criando a ilusão de um jardim; um pedaço de algo, não importa o quê; o silêncio dos dias mornos que se juntam sem parecer que se passam; o tempo que se alonga interminavelmente; a lentidão dos dias e o frio das noites; a palavra que se torna rara; o mundo para além dos muros do qual não se ouvem mais os murmúrios; o abismo que foi Robben Island e os traços do penitenciário em seu rosto agora esculpido pela dor, em seus olhos murchos pela luz do sol que refrata sob o quartzo, a poeira nesse rosto transformado em espectro fantasmagórico e em seus pulmões, nos dedos dos pés, e acima de tudo esse sorriso alegre e brilhante, essa postura altaneira, firme, em pé, o punho cerrado, pronto para abraçar de novo o mundo e fazer soprar a tempestade.
Despojado de quase tudo, ele lutou com unhas e dentes para não abdicar de forma alguma do resto de humanidade que seus captores queriam a qualquer preço arrancar dele e brandir como o troféu final. Reduzido a viver com quase nada, ele aprendeu a economizar tudo, mas também a cultivar um profundo desapego em relação às coisas da vida profana, aí incluídos os prazeres da sexualidade. Até o ponto de, confinado entre duas paredes e meia, não ser, apesar de tudo, escravo de ninguém.
Homem de carne e osso, Mandela viveu, portanto, próximo ao desastre. Ele penetrou na noite da vida, o mais próximo das trevas, à procura de uma ideia, de saber como viver livre da raça e da dominação do mesmo nome. Suas escolhas o conduziram à beira do abismo. Ele fascinou o mundo, porque voltou vivo do país das sombras.
Como os movimentos operários do século XIX ou ainda as lutas das mulheres, nossa modernidade foi trabalhada pelo sonho de abolição trazido pelos escravos. É esse sonho que foi prolongado, no início do século XX, pelas lutas em favor da descolonização. A práxis política de Mandela se inscreve nessa história específica das grandes lutas africanas pela emancipação humana. Tais lutas se revestiram, desde as origens, de uma dimensão planetária. Seu significado nunca foi apenas local. Sempre foi universal. Mesmo quando mobilizaram atores locais, em um país ou em um território nacional bem circunscrito, elas estavam no ponto de partida de solidariedades forjadas numa escala global e transnacional.
Foram lutas que, a cada vez, permitiram a extensão ou mesmo a universalização de direitos que até então tinham permanecido como o apanágio de uma raça. Foi o triunfo do movimento abolicionista ao longo do século XIX que pôs fim à contradição representada pelas modernas democracias escravagistas. Encontramos a mesma universalidade no movimento anticolonialista. O que ele visava senão tornar possível a manifestação de um poder próprio de gênese – o poder de se manter de pé por si mesmo, de se autodeterminar?
Ao tornar-se um símbolo da luta global contra o apartheid, Mandela ampliou esses significados. Aqui, o objetivo é estabelecer uma comunidade além da raça. Enquanto o racismo está de volta sob formas mais ou menos inesperadas, o projeto de igualdade universal está mais do que nunca diante de nós.
Resta dizer uma coisa sobre a África do Sul que Mandela deixa atrás de si.
A passagem de uma sociedade de controle para uma de consumo representa, sem dúvida, uma das transformações mais decisivas desde sua libertação e do fim do apartheid. Sob o regime de segregação, o controle consistia em rastrear e restringir a mobilidade dos negros. Ele se baseava na regulação dos espaços nos quais eles estavam confinados, com o objetivo de extrair deles o máximo de trabalho possível. Os contatos entre os indivíduos eram proibidos ou regulados por leis rigorosas, especialmente quando essas pessoas pertenciam a categorias raciais diferentes. O controle passava, portanto, pela modulação da brutalidade ao longo de linhas raciais.
Sob o apartheid, tal brutalidade tinha três funções.
Por um lado, visava enfraquecer a capacidade dos negros de garantir sua reprodução social. Eles nunca foram capazes de levantar os meios indispensáveis para uma vida digna, quer se tratasse de acesso a alimentação, moradia, educação e saúde etc. Essa brutalidade tinha por outro lado uma dimensão somática. Visava imobilizar os corpos, paralisá-los, quebrá-los se necessário. Por fim, atacava o sistema nervoso e tendia a secar as capacidades de suas vítimas de criar seu próprio mundo de símbolos. Suas energias eram, na maior parte do tempo, desviadas para as tarefas de sobrevivência. Esse era, com efeito, o trabalho que se esperava que o racismo realizasse.
Essas formas de violência e brutalidade foram objeto de uma interiorização mais profunda do que nós gostaríamos de admitir. Elas são, desde 1994, reproduzidas num modo molecular no âmbito da existência comum e pública. Manifestam-se em todos os níveis das interações sociais cotidianas, quer se trate das esferas íntimas da vida, das estruturas do desejo e da sexualidade ou até do irreprimível desejo de consumir todos os tipos de mercadorias.
Esse desejo desenfreado de consumo é tomado como essência e substância da democracia e da cidadania. A passagem de uma sociedade de controle para uma de consumo ocorre em um contexto marcado por várias formas de privação para a maioria dos negros. Opulência e privação extremas coexistem, e o fosso que separa esses dois estados tende cada vez mais a ser negociado pela violência e pelas diversas formas de acumulação.
A democracia pós-Mandela é composta principalmente de negros sem trabalho e de outros sem possibilidade de ser empregados, que não exercem um direito de propriedade sobre quase nada. A longa história do país é ela própria marcada pelo antagonismo entre dois princípios, o governo do povo pelo povo e a lei dos proprietários.
Até pouco tempo atrás, estes últimos eram quase exclusivamente brancos, e era isso que conferia às lutas uma conotação racial. As coisas não são mais exatamente assim hoje em dia. A classe média negra emergente, no entanto, não está em posição de desfrutar em total segurança os direitos de propriedade há pouco adquiridos. Ela não está segura de que a casa comprada a crédito não venha a ser retomada amanhã, pela força ou em virtude de circunstâncias econômicas adversas. Esse sentimento de precariedade é uma das marcas da psicologia de classe.
A África do Sul entra em um novo período de sua história, durante o qual os procedimentos de acumulação não acontecem mais por meio da expropriação direta. Eles passam agora pela captura e pela apropriação privada dos recursos públicos, pela modulação da brutalidade e por uma relativa instrumentalização da desordem. A constituição de uma nova classe dominante multirracial se dá, portanto, por meio de uma síntese híbrida dos modelos russo, chinês e africano pós-colonial.
Plenitude na humanidade
De resto, tanto da vida como da prática de Mandela, duas lições merecem ser lembradas. A primeira é que só existe um mundo, pelo menos de momento. O que, portanto, é comum para nós é o sentimento ou o desejo de sermos seres humanos de pleno direito. Esse desejo de plenitude na humanidade é algo que todos compartilhamos.
A segunda lição é que, para construir esse mundo que nos é comum, será preciso restituir àqueles que sofreram um processo de abstração e de coisificação na história a parte da humanidade que lhes foi roubada. Haverá pouca consciência de um mundo comum enquanto aqueles que foram imersos em uma situação de extrema pobreza não tiverem escapado das condições que os confinam na noite da infravida. No pensamento de Mandela, reconciliação e reparação estão no cerne da própria possibilidade de construção de uma consciência comum do mundo, isto é, a realização de uma justiça universal. Com base em sua experiência carcerária, ele chega à conclusão de que há uma parte de humanidade intrínseca da qual cada pessoa humana é depositária. Essa parte irredutível pertence a cada um de nós. Ela faz que, objetivamente, sejamos ao mesmo tempo distintos uns dos outros e semelhantes. A ética da reconciliação e da reparação, portanto, implica o reconhecimento daquilo que se poderia chamar de a parte do outro, que não é a minha e da qual eu, no entanto, sou o fiador, quer eu queira ou não. Essa parte do outro, eu não poderia agarrá-la sem consequências para a ideia de si mesmo, da justiça, da lei, ou até mesmo de toda a humanidade, ou ainda para o projeto do universal, se tal é de fato a destinação final.
Nessas condições, é inútil erigir fronteiras, construir paredes e lugares fechados, dividir, classificar, hierarquizar, tentar separar da humanidade aqueles que tivermos rebaixado, que desprezamos, que não se parecem conosco ou com os quais acreditamos que nunca vamos conseguir nos entender. Existe apenas um mundo, e somos todos herdeiros dele, ainda que as maneiras de habitá-lo não sejam as mesmas – daí justamente a real pluralidade das culturas e dos modos de viver. Dizer não significa de modo algum ofuscar a brutalidade e o cinismo que ainda caracterizam o encontro dos povos e das nações. Trata-se apenas de relembrar um dado imediato, inexorável, cuja origem se situa, provavelmente, no início dos tempos modernos: o processo irreversível de emaranhamento e entrelaçamento de culturas, povos e nações.
Muitas vezes, o desejo de diferença emerge precisamente ali onde se vive de forma mais intensa uma experiência de exclusão. A proclamação da diferença é então a linguagem inversa do desejo de reconhecimento e inclusão. Para aqueles que já experimentaram o domínio colonial ou para aqueles cuja parte de humanidade foi roubada em algum momento da história, a recuperação dessa parte de humanidade passa com frequência pela proclamação da diferença. Mas, como se vê em uma parte da crítica africana moderna, esse é apenas um momento de um projeto maior: o projeto de um mundo futuro, um mundo à nossa frente, cujo destino é universal; um mundo livre do fardo da raça, do ressentimento e do desejo de vingança que qualquer situação de racismo chama.

Achille Mbembe é professor de história e ciências políticas na Universidade de Witwatersand em Johannesburg, autor de Le sujet de race. Contribution à la critique de la raison nègre, editora Fayard (Paris).

Ilustração: Tulipa Ruiz

1 Nelson Mandela, Conversations avec moi-même [Conversas comigo mesmo], Seuil, Paris, 2011.
2 Cf. Nelson Mandela, Un long chemin vers la liberté [Um longo caminho para a liberdade], The Paperback, Paris, 1996.

Paraguai é devorado pela soja

CAÇADA AOS CAMPONESES
Paraguai é devorado pela soja
O Paraguai espera ser reintegrado ao Mercosul na reunião de cúpula do dia 17 de janeiro, um ano e meio após ter sido expulso em repúdio à queda do presidente Fernando Lugo. Um golpe de Estado que favoreceu, principalmente, os verdadeiros chefes do país: os senhores da soja
por Maurice Lemoine
Em 24 de agosto de 2013, um vento gelado dilacerava o rosto. Divididas em quatro “brigadas”, 108 famílias reocuparam a terra da localidade conhecida como Naranji To, de onde haviam sido expulsas quatro vezes pelas forças da ordem. Sobre uma coberta, armaram-se barracas precárias em meio a trouxas de roupa. “A partir de amanhã, plantaremos culturas de subsistência”, anunciou o dirigente Jorge Mercado, com uma segurança pouco convincente. A força das lembranças ainda transparecia em seu rosto como uma onda. A última expulsão havia sido particularmente violenta: “Os policiais queimaram 84 barracas! Roubaram animais, aves, mataram os porcos”.
Em 1967, o ditador Alfredo Stroessner deu essas terras de mão beijada a um alemão, Erich Vendri, as quais foram posteriormente “herdadas” por seus filhos Reiner e Margarita. Mas elas não deixaram de pertencer ao Estado. “Verificamos junto às instituições responsáveis o que é legal e o que foi vendido ou adquirido com irregularidades”, explica Mercado. “Temos anos de experiência em recuperar, pedaço por pedaço, o território paraguaio.” Enquanto disserta sobre a cobiça dos terratenientes (latifundiários) e dossojeros (produtores de soja), um lençol de trevas cobre o acampamento. Reunidos ao redor de braseiros incandescentes, os camponeses tomam seu mate, deixando o calor da bebida penetrá-los lentamente.
Dois dias depois, com a brutalidade costumeira, a polícia atacou novamente.
Nesse país de 6,7 milhões de habitantes, cerca de 300 mil famílias de camponeses são desprovidas de terras. Sem remontar às calendas paraguaias, foi no fim do século XIX que o modelo de latifúndio se consolidou. Sob Stroessner (1954-1989), superfícies consideráveis de “terras livres” pertencentes ao Estado e legalmente destinadas à reforma agrária, como Naranji To, foram repartidas entre amigos, cúmplices, militares, funcionários. A partir da década de 1970, produziu-se uma revolução maior: vinda dos estados do Sul do Brasil, a agricultura mecanizada passou a fronteira com sua vedete, a soja.
Um espasmo agitou os campos. Os pequenos e médios produtores – que historicamente alimentavam o país – atrapalhavam a expansão desse setor voltado para a exportação. Ora, existem diversas formas de perseguir os que impedem o plantio intensivo. “A mais simples é comprar a terra deles”, comenta Luis Rojas. “Oferecemos a um camponês um valor que ele jamais viu em sua vida. Ele imagina que é uma fortuna, vende o lote, vai para a cidade, gasta tudo em três ou quatro meses e engrossa os cinturões de miséria, porque fica sem trabalho”, completa.
E assim a soja ampliou suas fronteiras.
Comunidades inteiras migraram pelas secas causadas pelo desmatamento. Além disso, a aspersão aérea de pesticidas afetou as culturas limítrofes, envenenou cursos de água, obrigou os animais a percorrer quilômetros em busca de pasto, se arrastando pelos últimos tufos. Vômitos, diarreias, dores de cabeça. Impotentes, os vizinhos venderam suas porções de terra a preço de banana.
E assim a soja engoliu vilas e vilarejos.
Em 1996, sua variedade transgênica, a semente “roundup ready”, da Monsanto, surgiu na Argentina, de onde travou uma guerra imperialista, sem aprovação do governo, contra o Brasil, a Bolívia e o Paraguai, reforçada pelos pesticidas mortíferos para o meio ambiente.1
E assim a soja inundou planícies e savanas – maré implacável.
Ilhas irredutíveis tentam fazer valer seus direitos. “Com o pretexto de atender a suas reivindicações, o governo desloca essas pessoas, que são enviadas para lugares de florestas que precisam ser desbravados, a 80 quilômetros de qualquer estrada, sem posto de saúde, sem nada”, critica Perla Alvarez, da Coordenação de Mulheres Rurais e Indígenas (Conamuri). E quando alguns desses deslocados se organizam para retomar as terras férteis que lhes foram confiscadas, o agronegócio solta os cachorros. “Desde o início do período democrático, em 1989, até hoje, registraram-se 116 casos de assassinato ou desaparecimento de dirigentes ou militantes de organizações camponesas”, lembra Hugo Valiente, da Coordenação de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy). Além dos agentes de Estado, os seguranças particulares dos latifundiários, os matones, atuam sob total impunidade.
E a soja avança, avança. Soja sem fim.
Influentes, organizados, incrustados no coração dos grandes partidos tradicionais – a Associação Nacional Republicana (ANR, ou Partido Colorado, no poder de 1946 a 2008, e de volta em 2013) e o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA) –, os terratenientesadministram empresas de trens, possuem suas próprias pistas de aterrissagem, seus próprios aviões. O grupo do brasileiro Tranquilo Favero, o “rei da soja” (ver box), possui 140 mil hectares em oito departamentos (Alto Paraná, Canindeyú, Itapúa, Caaguazú, Caazapá, San Pedro, Central e Chaco), nove empresas (tratamento e distribuição de sementes, elaboração e importação de agroquímicos e fertilizantes, financiamento de produtores, fornecimento de máquinas e combustíveis etc.) e um porto particular do Rio Paraná – via fluvial chave para grandes projetos de infraestrutura no continente. Os oito membros da Central Nacional de Cooperativas (Unicoop) controlam mais de 305 mil hectares. O grupo Espírito Santo se contenta com apenas 115 mil. Em resumo, segundo o Censo de 2008, 2% dos proprietários monopolizam 85% das terras do Paraguai.
De seu lado, as multinacionais aproveitam. As norte-americanas Cargill (vinte silos, uma fábrica, três portos particulares),2 ADM Paraguay Saeca (trinta silos, seis portos particulares) e Bunge (cinco silos com capacidade total de 230 mil toneladas), além da Louis Dreyfus (França) e Noble (Hong Kong), obtêm altos benefícios com a soja e controlam cerca de 40% de todas as exportações do país. BASF e Bayer (alemãs), Dow (Estados Unidos), Nestlé (Suíça), Parmalat (Itália) e Unilever (Países Baixos, Grã-Bretanha), para citar algumas, completam esse cenário.3 E convém mencionar um detalhe: mesmo gerando com suas atividades 28% do PIB, latifundiários e transnacionais contribuem com apenas 2% das receitas fiscais do país.4
Aos buzinaços, filas intermináveis de máquinas agrícolas e caminhões invadem as estradas, enquanto a soja avança sem fim sobre as terras vermelhas e pouco férteis da região oriental, inclusive a dos ganaderos– criadores de 14 milhões de cabeças de gado na rústica região do Chaco. As superfícies invadidas pelo “ouro verde” passaram de 1,5 milhão de hectares em 1993 a 3,1 milhões hoje, e fazem do Paraguai o quarto maior exportador mundial de soja. Cerca de 60% do grão produzido parte rumo à Europa para a alimentação de gado e produção de biocombustíveis.
Mobilização sem terra
Os camponeses, contudo, não assistem passivos a esse processo. “Já recuperamos muitas terras. Mais de trezentos de nossos companheiros estão em ocupações nas zonas de Itapúa e Caazapá”, explica Esther Leiva, coordenadora nacional da Organização de Luta pela Terra (OLT). Entre 1990 e 2006, período em que ocorreram 980 conflitos por terra, camponeses realizaram 414 ocupações, a forma de pressão mais utilizada para “sensibilizar” as autoridades. Chamadas de “invasões” pelos proprietários e pela mídia, as ocupações resultaram em 366 expulsões e 7.346 detenções.5 Mas, analisa Dominga Noguera, coordenadora das organizações sociais de Canindeyú, “apenas nesse departamento, 130 hectares foram reconquistados”.
Nesses campos de caminhos pouco transitáveis, apenas motos de baixa cilindrada chegam às colônias agrícolas, os asentamientos [assentamentos]. Aqui, no coração do departamento de Itapúa, no Asentamiento 12 de Julio, recorda-se como, em 1996, há dezessete anos, setenta pessoas foram encarceradas durante seis meses por tentar ocupar à força o “sítio” de 1.600 hectares pertencentes a Nikolai Neufeld, um menonita alemão.6 Nesse país desprovido de cadastro fundiário, pacotes de títulos de propriedade fraudulentos foram entregues por um sistema judiciário sob controle da cúpula de magistrados ligados à ditadura de Stroessner e ao Partido Colorado. Um caos administrativo, a ponto de uma terra possuir três ou quatro títulos de propriedade diferentes. A soma dos títulos de terra no Paraguai faria o país ter dois andares...
Em 2005, os habitantes do Asentamiento 12 de Julio retomaram a luta com o apoio da OLT e da Mesa de Coordenação Nacional de Organizações Camponesas (MCNOC). Ocuparam quatro vezes essas terras, e nas quatro tentativas foram violentamente despejados pela polícia, pelos militares e pelos matones, sob os olhos de enviados especiais dos meios de comunicação da oligarquia – ABC Color,7La NaciónÚltima Hora–,que assistiram de camarote ao incêndio dos ranchos desses “criminosos” de pés descalços.
O combate, porém, trouxe frutos. Cerca de 230 famílias vivem hoje legalmente nessas terras, onde plantam mandioca, milho, feijão, batata-doce, amendoim e gergelim. Em 2009, o Instituto Nacional de Desenvolvimento Rural e da Terra (Indert), o órgão encarregado da reforma agrária, de fato recomprou a terra de Neufeld, que desde então foi condenado a cinco anos de prisão: entre 2007 e 2011, ele vendeu terras que não lhe pertenciam a imigrantes alemães por 14 milhões de euros. Para explicar esses felizes desdobramentos, Magno Álvarez, robusto dirigente da comunidade, observa que, “em 2009, as tensões tinham diminuído, era o período do presidente [Fernando] Lugo”.
No dia 20 de abril de 2008, cansados de 61 anos de autoritarismo do Partido Colorado, 40,8% dos eleitores depositaram suas esperanças na figura desse antigo “padre dos pobres”, socialmente muito engajado. Na ausência de uma base política organizada, Lugo foi levado ao poder pela Aliança Patriótica pela Mudança (APC), uma coalizão de movimentos sociais e oito partidos, entre os quais se destacava o Partido Liberal, formação conservadora incapaz até aquele momento de enfrentar a dominação do Partido Colorado.8 O casamento durou pouco.
Próximo dos governos progressistas da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba),9 Lugo levou adiante uma política moderada. Ainda assim, foi demais para a coalizão: ele recusou a instalação de uma base militar norte-americana em Mariscal Estigarribia (Chaco); negou a concessão de subsídios de energia no valor de US$ 200 milhões à multinacional canadense Rio Tinto Alcán, que queria instalar uma fábrica de alumínio nas margens do Rio Paraná; aumentou os investimentos sociais; permitiu aos pobres o acesso gratuito a hospitais; evocou uma reforma agrária e expressou sua simpatia em relação aos movimentos camponeses, que, com esse apoio implícito, multiplicaram as ocupações e manifestações. Depois de apoiá-lo por oportunismo eleitoral, o Partido Liberal do vice-presidente Federico Franco voltou-se contra o chefe de Estado. De mãos dadas com o adversário coloradode antes (ambos os partidos formam a maioria absoluta no Congresso), jogou abertamente em prol da desestabilização do governo Lugo.
Mais um golpe de Estado
Apoiada pela imprensa, a União de Grêmios da Produção (UGP) deu o alarme. O conflito se agravou quando esse poderoso lobby reivindicou a introdução de variedades geneticamente modificadas de milho, algodão e soja. “O ministro da Agricultura, o liberal Enzo Cardozo, agiu em total conformidade com os interesses da Monsanto, Cargill e Syngenta. Era literalmente funcionário dessas empresas e, ao mesmo tempo, porta-voz da UGP”, lembra Miguel Lovera, então presidente do Serviço Nacional de Qualidade e Saúde dos Vegetais e Sementes (Senaves). Contudo, a autorização não foi acordada: a ministra da Saúde, Esperanza Martínez, e o de Meio Ambiente, Oscar Rivas, assim como Lovera pelo Senaves se opuseram. O ABC Colordesencadeou uma campanha violenta contra eles. E, pela milésima vez, o vice-presidente Franco evocou a destituição de Lugo por um “julgamento político” (o equivalente a um impeachment). Faltava apenas encontrar um pretexto.
A 400 quilômetros a nordeste de Assunção, próximo a Curuguaty – cidade de três avenidas estreitas, uma dezena de vias perpendiculares e, em cada esquina, um banco onde é depositado o dinheiro dos sojeros –, na localidade chamada Marina Kue, alguns “sem-terra” ocupam pacificamente uma propriedade grilada por Blas Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado (que representou no Senado de 1989 a 2008) e proprietário de 70 mil hectares de terras da empresa Campos Morombí. Ninguém ignora que os cerca de mil hectares disputados em Marina Kue pertenceram ao Exército paraguaio até o fim de 1999 e que, em 4 de outubro de 2004, o Decreto n. 3.532 declarou-os de “interesse social” e transferiu-os ao Indert. Entretanto, no dia 15 de junho de 2012, 324 policiais fortemente armados irromperam o local para desalojar – pela sétima vez em dez anos! – os cerca de sessenta camponeses presentes no acampamento.
O que aconteceu na sequência? “Queríamos a terra e tivemos uma guerra”, suspira Martina Paredes, membro da Comissão de Vítimas de Famílias de Marina Kue, que perdeu um irmão nos conflitos. Nesse 15 de junho, após um primeiro cessar-fogo, eclodiu um tiroteio durante o qual onze camponeses e seis membros das forças da ordem perderam a vida. Ainda hoje, ninguém sabe quem iniciou o conflito armado. “Falei com alguns policiais, e eles sabem tanto quanto nós”, confidencia Martina. Um dos dirigentes de Marina Kue, Vidal Vega, anunciou que deporia sobre a presença de infiltrados e matones de Campos Morombí nos locais do massacre. Mas foi assassinado antes disso, em 16 de dezembro de 2012. Além disso, a gravação realizada por um helicóptero da polícia que sobrevoava permanentemente a região desapareceu de forma misteriosa.
 A presença de mulheres e crianças no acampamento abala qualquer credibilidade da hipótese de uma emboscada orquestrada pelos camponeses contra as forças da ordem. Isso não impediu, contudo, que, no dia 22 de junho de 2012, Lugo, acusado de atiçar a violência contra os grandes proprietários de terra, fosse destituído de seu posto por um “julgamento político” de 24 horas, quando, de acordo com o artigo 225 da Constituição, ele teria o prazo de cinco dias para organizar sua defesa. Em outras palavras, isso se chama golpe de Estado.
Um clássico latino-americano
Assim que Franco subiu ao poder, seu governo desativou imediatamente a comissão independente nomeada para investigar os acontecimentos de Marina Kue com a assistência da Organização dos Estados Americanos (OEA). E não demorou sequer uma semana para, por decreto e sem nenhum procedimento técnico, o algodão geneticamente modificado ser autorizado. Durante os meses seguintes, sete outras variedades transgênicas de milho e soja também foram liberadas.
Segundo a fórmula consagrada, as eleições de 22 de abril de 2013 marcaram o “retorno à normalidade” do Paraguai, que após o golpe foi excluído do Mercosul, da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e do Caribe (Celac). Quando efetivamente assumiu as funções de chefe de Estado no dia 15 de agosto, em nome do Partido Colorado, Horacio Cartes, o homem mais rico do país – que tem por principal conselheiro o chileno Francisco Cuadra, ex-ministro e porta-voz de Augusto Pinochet –, se deslocou do Palácio do Governo à Catedral a bordo de um Chevrolet Caprice branco conversível utilizado por Stroessner em seu tempo. Dando o tom de seu futuro mandato durante um almoço de trabalho do qual participaram 120 (La Nación) ou 400 (ABC Color) “chefes de empresas nacionais e estrangeiras entusiastas”, prometeu que não toleraria que “os investidores fossem maltratados pelos funcionários públicos.
Dois dias depois, provocando torrentes de indignação na mídia, cinco seguranças particulares da fazenda Lagunita10 foram executados pelo misterioso Exército do Povo Paraguaio (EPP), um pequeno grupo – e não guerrilha – ao qual se atribuem 31 sequestros e assassinatos desde 2006 em zonas de difícil acesso dos departamentos de Concepción e San Pedro, os mais pobres do país. A investigação revela que uma das vítimas, Feliciano Coronel Aguilar, um suboficial da polícia, dirigia, em seu “tempo livre”, a empresa de segurança San Jorge, encarregada da segurança da fazenda. De seu lado, no Facebook, o EPP afirma que seus alvos “fazem parte de um grupo parapolicial que matou vinte camponeses”, o que confirma implicitamente o ex-deputado colorado Magdaleno Silva: “É preciso investigar a verdadeira atividade da empresa de segurança San Jorge”.11 O padre Pablo Caceres, da diocese de Concepción, afirma: “Essas pessoas que são assassinadas, esses seguranças particulares, que nos dizem ser pobres trabalhadores, eram na realidade matones”.12
Em abril de 2010, o presidente Lugo, regularmente acusado de ter ligações com o EPP, havia decretado estado de exceção durante um mês para tentar erradicá-lo – sem resultado – em quatro departamentos. No dia 22 de agosto, com uma velocidade meteórica, o Congresso aprovou uma lei que permite a Cartes ordenar operações militares sem a necessidade de, antes, declarar estado de exceção. A polícia nacional passou ao controle operacional dos militares, que se deslocam pelos departamentos de San Pedro, Concepción e Amambay, apoiados por helicópteros e tanques blindados. Tudo isso para acabar com um movimento de oposição armada cujos efetivos não chegam a constituir duas equipes de futebol?
Na comunidade de Tacuatí Poty, para não se ater a um único exemplo, reina uma atmosfera de fim de mundo. Nesse assentamento de setecentas famílias encurraladas pela soja, brigou-se por tudo: primeiro pela terra, depois pelo posto de saúde, pela escola, o colégio, a água potável, a estrada. A oito quilômetros dali, um rico latifundiário, Luis Lindstrom, foi sequestrado entre junho e setembro de 2008 pelo EPP, e liberado mediante o resgate de US$ 130 mil, depois assassinado no dia 31 de maio de 2013 por dois franco-atiradores supostamente pertencentes à “guerrilha”. Acusado de constituir um dos campos de base da subversão, Tacuatí Poty vive o inferno das revistas noturnas e sem mandado realizadas por militares, além de intimidações, provas plantadas pela polícia nos quartos daqueles que ela deseja incriminar e detenções arbitrárias.
“As pessoas estão com medo. Não se pode confiar na justiça nem nas instituições que deveriam proteger nossos direitos. Os acusados são pais de família, lutadores que se levantam às 5 da amanhã para trabalhar. Como se fosse por acaso, eles são também os dirigentes. No fundo, o problema são as nossas terras. Em nossa ignorância, é o que percebemos. Ao acabar com os dirigentes, eles acham que vão acabar conosco”, alarma-se Victoria Sanabria.
Trata-se, em resumo, de um grande clássico latino-americano. Uma ferida mal curada termina por inflamar-se. Grupos, pequenos ou grandes, condenáveis ou não, radicalizam-se. O poder dito “democrático” grita de forma ameaçadora e, lançando ordens de capturar presumidos culpados, criminalizam em primeiro lugar... os movimentos sociais – em benefício, no caso do Paraguai, dos sojeros.
BOX:
"Brasiguaios": desprezados ou adorados
Cerca de 19% do território nacional paraguaio, ou 7,7 milhões de hectares (32% do total das terras aráveis), estão nas mãos de proprietários estrangeiros. E cerca de 4,8 milhões de hectares pertencem a brasileiros, principalmente nas zonas fronteiriças do Alto Paraná, Amambay, Canindeyú e Itapúa. É o que mostra o estudo coordenado por Marcos Glauser, da Organização BASE Pesquisas Sociais, e Alberte Alderete, do Serviço Jurídico Integral para o Desenvolvimento Agrário (Seija), realizado com base no Censo Agrário 2007-2008.
Dois períodos favoreceram a chegada dos brasiguaios. As leis que permitem a venda de terras públicas foram aprovadas após a guerra contra a Tríplice Aliança, que, de novembro de 1864 a março de 1870, opôs o Paraguai à coligação composta por Brasil, Argentina e Uruguai – com consequências desastrosas para o Paraguai. Logo depois, nos anos 1970, marcados pela queda dos preços no mercado fundiário, tornou-se tão fácil desmatar áreas selvagens que Alfredo Stroessner não tinha nada a recusar a seus homólogos dos países vizinhos.
O cenário seguiria igual até a “ditadura” ser substituída pela “ditamole”, momento em que os colonos brasileiros, com a bagagem da agricultura mecanizada, introduziram a soja no país vizinho. Esses colonos foram os pioneiros das empresas de agronegócio mais importantes no Paraguai e entraram em conflito direto com os camponeses locais.
Em matéria de “domesticação” das populações, os recém-chegados haviam feito escola em seu país de origem: “A grande maioria chegou com a mentalidade de ‘fronteira’, para fazer fortuna facilmente, e se impôs por meio da violência, abalando costumes, normas, regras ambientais. Sem mencionar as leis trabalhistas”, denuncia Miguel Lovera, presidente do Serviço Nacional de Qualidade e Saúde dos Vegetais e Sementes (Senaves). Apesar de empregar pouca mão de obra em função da mecanização da agricultura, esses colonos – cujas propriedades variam de cerca de 100 hectares até os 140 mil hectares do “rei da soja” Tranquilo Favero – não raro infligem a seus trabalhadores regimes de semiescravidão. “Eles possuem seus próprios seguranças, mas é comum que usem camponeses locais como matones [guardas particulares] em troca de um pouco de dinheiro”, conta Jorge Lara Castro, ministro de Negócios Estrangeiros do ex-presidente Lugo. A coordenadora nacional da Organização da Luta pela Terra (OLT), Esther Leiva, é mais direta: “Se você passar pelas terras deles, eles podem facilmente atirar”.
“Entre eles [os brasiguaios], há de tudo”, constata o economista Luis Rojas. “Brasileiros ‘puro sangue’, naturalizados, filhos da segunda e terceira gerações. Mas tenham ou não documentos paraguaios, todos mantêm uma forte relação com o país de origem”, explica. Em distritos onde todas as rádios e canais de televisão transmitem em português, os brasiguaios se comunicam nesse idioma, possuem suas próprias escolas, igrejas e permanecem economicamente ligados ao país vizinho. “Não vemos isso com bons olhos”, confessa Isebiano Diaz, camponês de um assentamento do departamento de Caazapá, resumindo o sentimento de sua comunidade e de outras também. “Eles enchem a cabeça das pessoas com ideias estranhas”, completa.
Xenofobia? “Há rejeição”, admite Rojas. “Mas é muito complexo: enquanto os camponeses são abandonados, os brasiguaios são presentes no meio dos negócios que exploram.” De fato, como tal, a comunidade brasileira se envolve pouco com os partidos políticos, mas faz forte pressão política quando considera que seus interesses são afetados ou ameaçados. E quase sempre obtém ganho de causa, pelo apoio incondicional dos círculos dirigentes. “A médio prazo, seus territórios se converterão em encraves brasileiros em território paraguaio”, observa Alderete. Se é que já não é assim... (M.L.)

Maurice Lemoine
é jornalista ee autor de "Cinq Cubains à Miami ( Cinco cubanos em Miami)", Dom Quichotte, Paris , 2010.


Ilustração: Mello

1 Diante do “fato consumado”, o governo paraguaio legalizou sem muitos problemas a soja transgênica em 2004.
2 A Cargill atualmente está no centro de um escândalo na Colômbia, onde é acusada de ter se apropriado de maneira fraudulenta de 52 mil hectares que o Estado havia designado para camponeses pobres.
3 Luis Rojas Villagra, Actores del agronegocio en Paraguay [Atores do agronegócio no Paraguai], BASE Investigaciones sociales, Assunção, 2012.
4 E’a, Assunção, 19 set. 2013.
5 “Informe de derechos humanos sobre el caso Marina Kue” [Relatório de direitos humanos sobre o caso Marina Kue], Coordenadoria de Direitos Humanos do Paraguai, Assunção, 2012.
6 Membros de uma congregação evangélica de origem europeia (essencialmente alemã) que emigrou para o Paraguai na década de 1920. Formado por cerca de 30 mil pessoas, o grupo assegura mais de 80% da produção leiteira nacional.
7 Aldo Zuccolillo, proprietário do ABC Color, é o principal sócio da Cargill no Paraguai.
8 Ler Renaud Lambert, “Au Paraguay, l’‘élite’ aussi a voté à gauche” [No Paraguai, a “elite” também votou na esquerda], Le Monde Diplomatique, jun. 2008.
9 Antígua e Barbuda, Bolívia, Cuba, Equador, Honduras (até o golpe de Estado de 2009), Nicarágua, República Dominicana, São Vicente e Granadinas, Venezuela.
10 Fazenda dedicada à criação de gado.
11 E’a, 21 ago. 2013.
12 Radio Ñanduti, Assunção, 6 set. 2013.