Uruguai, vanguarda dos direitos civis
Autor(es): Flávia Piovesan |
O Globo - 06/02/2014 |
Em 29 de janeiro, o governo do Uruguai enviou ao Congresso um projeto de lei que objetiva facilitar a cidadãos do Mercosul e de países associados ao bloco a obtenção de residência permanente no país. A pioneira iniciativa busca reforçar o caráter integracionista do Uruguai, bem como “fortalecer e aprofundar os laços entre os países da região, por meio de uma política de livre circulação”. Ao enquadrar-se em uma política migratória com base em uma perspectiva de direitos, a proposta destoa do contexto contemporâneo cada vez mais marcado por políticas nacionalistas inspiradas em uma atitude xenófoba com relação ao “não nacional” — basta atentar ao impacto da crescente ascensão de partidos nacionalistas de direita no debate político europeu, sobretudo em Inglaterra, França, Itália, Holanda e Polônia.
Em 10 de dezembro de 2013, o Uruguai tornou-se ainda o 1º país do mundo a legalizar a produção, a distribuição e a venda da maconha sob o controle do Estado. De acordo com a lei, o Estado passa a assumir o controle e a regulação das atividades de importação, produção e aquisição, a qualquer título, armazenamento, comercialização e distribuição da maconha. A lei limita a quantidade máxima que um usuário pode portar (40 gramas), bem como determina o máximo a ser gasto por mês com o consumo do produto. A erva poderá também ser cultivada para uso científico e medicinal, mediante receita médica. A finalidade é esvaziar o poder do narcotráfico e reduzir a dependência dos uruguaios de drogas mais pesadas. Uma vez mais, a proposta do Uruguai destoa da tendência internacional inspirada na fracassada “guerra global contras as drogas”, radicada fundamentalmente na estratégia repressivo-punitiva de combate. Como reconhece a própria Comissão Global de Políticas sobre as Drogas — formada por líderes políticos e empresariais — na voz de seu integrante Richard Branson, empresário britânico e fundador do Grupo Virgin, “a guerra contra as drogas falhou em reduzir o seu uso, mas lotou nossas cadeias, custou milhões aos contribuintes, abasteceu o crime organizado e causou milhares de mortes”. Neste debate, destaca-se a exitosa experiência de Portugal, que decidiu por uma política de descriminalização das drogas, não resultando em aumento do consumo, mas em maior controle e vigilância.
Não bastando estas inovadoras medidas, outro importante avanço ocorreu em 10 de abril de 2013, quando o Uruguai se tornou o segundo país a aprovar o “matrimônio igualitário” na América do Sul. Ao equiparar o casamento entre homossexuais e heterossexuais — endossando a visão de que “o matrimônio civil é a união permanente de duas pessoas de distinto ou igual sexo” —, o Uruguai se destaca no cenário contemporâneo em que práticas homossexuais ainda são criminalizadas em mais de 70 países no mundo. Afirma o combate à homofobia e a defesa da diversidade sexual, sob o lema de que a orientação sexual não pode justificar a restrição de direitos.
Por fim, em 17 de outubro de 2012, o congresso do Uruguai aprovou lei que permite o aborto nas primeiras 12 semanas de gestação, tornando-se o terceiro país da América Latina a legalizar a interrupção da gravidez. Determina a lei que a decisão a respeito da interrupção da gravidez seja precedida de uma consulta com um comitê integrado por ginecologistas, psicólogos e assistentes sociais, que informará sobre os riscos e as alternativas ao aborto. Sob a ótica da saúde pública e da justiça social, a nova lei está em plena consonância com os parâmetros protetivos internacionais a demandar dos Estados que sejam revisadas as legislações punitivas em relação ao aborto, a ser enfrentado como problema de saúde pública. Constata-se uma ineficácia social dramática das normas penais incriminadoras do aborto, que, ao fim, não protegem a mulher nem tampouco o feto, em direta violação à autonomia, à liberdade, à vida e à saúde da mulher. Pesquisa de 22 de julho de 2013 revela que, desde a legalização do aborto no Uruguai, nenhuma mulher havia falecido em virtude do procedimento.
Estes quatro avanços notáveis no campo dos direitos civis invocam a coragem de romper com a perpetuação de tabus e políticas falidas, ao assumir a ousadia do risco com um experimentalismo de vanguarda. Como reconhece a revista “The Economist”, de 21 de dezembro de 2013, ao premiar o Uruguai como o país do ano (country of the year), “as transformações lá ocorridas não são apenas capazes de aprimorar uma nação, mas têm a potencialidade de beneficiar o mundo”.
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