terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

O rolezinho da juventude nas ruas do consumo e do protesto

O rolezinho da juventude nas ruas do consumo e do protesto

Le Monde Diplomatique Brasil

Os “rolezinhos” levaram para dentro do paraíso do consumo a afirmação daquilo que esse mesmo espaço lhes nega: sua identidade periférica. Se quando o jovem vai ao shopping namorar ou consumir com alguns amigos ele deve fingir algo que não é, com os rolezinhos ele afirma aquilo que é!
por Renato Souza de Almeida
Osjovens têm criado formas cada vez mais interessantes de manifestação. Desde as jornadas de junho de 2013 – que levou às ruas milhares de brasileiros – até os chamados “rolezinhos” – que também vêm colocando centenas em circulação – se instalou uma crise na análise daqueles que insistiam em afirmar uma possível apatia dessa geração juvenil.
“Sair de rolê...” significa dar uma circulada despretensiosa pela vila ou pela cidade. É possível dar um rolê de trem, de ônibus ou a pé. Geralmente, o rolê está ligado ao lazer ou a alguma prática cultural. Sai de rolê o pichador, o skatista, o caminhante... O que vem chamando a atenção de muita gente é como um simples gesto de sair e circular de forma livre tem ocupado um papel central nas principais mobilizações juvenis na cidade de São Paulo nos últimos tempos.
Não é por menos que o estopim das manifestações de junho foi a luta do Movimento Passe Livre (MPL). O passe livre é uma reivindicação em favor da possibilidade de dar um rolê sem que a catraca – e o tributo que a acompanha – possa impedir. Quando a Polícia Militar decidiu impedir o rolê de uma pequena multidão na Avenida Paulista (ainda antes de as manifestações se alastrarem como chama pelo país), alguns dias depois uma imensa quantidade de pessoas tomou o Largo da Batata e seguiu de rolê para a mesma Avenida Paulista, para o Palácio dos Bandeirantes e para muitas outras ruas da cidade. O direito a dar um rolê foi a principal reivindicação daquele histórico movimento de junho de 2013.
Quem não é mais jovem e sempre morou nas periferias de São Paulo, com raras exceções, vai se recordar que a rua era o espaço por excelência da sociabilidade, do lazer e da convivência. Com a chegada do asfalto, vieram também muitos carros e se instituiu como verdade o discurso de que a rua é lugar perigoso e violento. Para muitos adultos, as políticas culturais só se justificam se for para “tirar os jovens das ruas”. Para os jovens, ao contrário, suas ações culturais só têm força e sentido quando acontecem na rua, no espaço público.
A condenação da rua como espaço da violência veio acompanhada da chegada dos shopping centers também às periferias. Muita gente vai ao shopping tentar encontrar um vazio deixado pelo “fim” das ruas. Para além do consumo, busca-se num shopping um passeio mais livre, solto, e a possibilidade de encontro com pessoas de fora do círculo mais próximo, familiar. No entanto, esse encontro não acontece. Tampouco a livre circulação. As pessoas só encontram uma multidão “sem rosto e coração” – nos dizeres dos Racionais MC’s –, e a circulação no interior do shopping não pode ocorrer de forma livre e espontânea. Ela tem regras claras e rígidas: os pobres podem circular pelo shopping, contanto que finjam pertencer a outra classe social. Mesmo que circulem no shopping sem recursos para consumir, eles devem desejar consumir. Da mesma forma, os negros podem circular pelo shopping tranquilamente, desde que finjam ser brancos nas vestimentas, nos cabelos, no comportamento etc.
Os rolezinhos em shoppings – da periferia ou das áreas abastadas –, que se tornaram um fenômeno neste verão, têm características muito semelhantes com os pancadões de rua realizados de forma espontânea e congregam um número significativo de jovens que se reúnem, sobretudo, em torno da expressão cultural do funk. O polêmico e famigerado funk é um dos principais mobilizadores dos jovens na metrópole paulistana. E um dos segredos da sua força não está necessariamente no apelo sexual de algumas músicas ou na sua batida envolvente, mas na forma como ressignificouas ruas para esses jovens. “No dia em que tem pancadão, a rua é nossa!” E se a rua é “nossa”, pode-se fazer qualquer coisa, inclusive não fazer nada... E, se o “som é de preto, de favelado e, quando toca, ninguém fica parado”, não há necessidade de fingir ser outra coisa, como exigem os shoppings centers. Ao contrário, é um momento de afirmação dessa mesma identidade periférica.
Nesse sentido, estar no shopping – no local que a sociedade estabeleceu para substituir a rua – é bastante provocador. Os rolezinhos levaram para dentro do paraíso do consumo a afirmação daquilo que esse mesmo espaço lhes nega: sua identidade periférica. Se quando o jovem vai ao shopping namorar ou consumir com alguns amigos ele deve fingir algo que não é, com os rolezinhos ele afirma aquilo que é! E quando faz essa afirmação ele revela a contradição na lógica dos shopping centers. Ou seja, os rolezinhos põem por terra a aparente circulação livre e o espaço aberto que os shoppings dizem proporcionar. Quando o jovem afirma, por meio do rolezinho, sua identidade de negro e pobre, a contradição se evidencia e a polícia é acionada, e tão logo o paraíso do consumo e do prazer se revela como o inferno do preconceito racial e da violência.
Esses jovens que hoje mobilizam os rolezinhos são intitulados “geração shopping center”, consumista, por parte dos mais velhos. Porém, a prática dos rolezinhos nos shoppings está revelando a contradição mais aguda desse espaço que tentou tomar o locussimbólico da rua. Nos rolezinhos, os jovens não são consumidores, mas produtores. Produzem um novo jeito de circular pelo shopping. Produzem uma prática cultural que se contradiz com esse lugar. Produzem contradição e desordem no sistema. E produzem uma nova gramática política ao afirmar sua classe num espaço que existe para negá-la.
É significativo que os rolezinhos nos shoppings se iniciem num momento em que um projeto de lei que proibia as festas de rua, sobretudo os bailes funks, apresentado por representantes da “bancada da bala”, se encontrava para sanção ou veto do prefeito. O prefeito vetou. Mas as ruas ainda estão longe de pertencer aos jovens. Por isso, os rolezinhos continuaram e aumentaram. Os jovens querem as ruas de volta. O pancadão é só um exemplo dessa demanda. Para demonstrarem que o desejo dos shoppings de assumir o lugar da rua fracassou, os jovens resolveram levar a rua para dentro dos próprios shoppings e escancararam a luta de classes na cidade. É como se o povo não estivesse mais na rua para exigir seus direitos. A própria rua virou um direito que esses jovens exigem.
Uma das respostas encaminhadas pelo governo federal por conta das manifestações de junho foi a aprovação, no mês de agosto, do Estatuto da Juventude. Entre os “novos” direitos apontados em seus artigos, alguns enfatizam a importância da circulação e mobilidade dos jovens, seja no espaço urbano ou no campo. Esse direito, ao lado do direito à produção cultural e da ampliação dos espaços públicos de lazer, está no centro das reivindicações dos jovens, seja nos rolês nos shoppings ou nas jornadas das grandes avenidas.

Renato Souza de Almeida
Mestre em Antropologia, professor da Faculdade Paulista de Serviço Social (Fapss), assessor do Instituto Paulista de Juventude (IPJ) e coordenador do Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

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