Marchas e contramarchas diante da arbitrariedade governamental | ||
Publicado em Le Monde Diplomatique
Evo
Morales foi apresentado à comunidade internacional como defensor
universal dos direitos da Mãe Terra e o 1° indígena a chegar à
presidência na Bolívia. Por que então ele insistiu em construir uma
estrada cortando o Parque Indígena Isiboro Sécure, a ponto de criar
inimizade com setores sociais que antes o apoiavam?
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por José Antonio Quiroga T. | ||
(Protesto contra a construção de uma estrada no Parque Indígena
Isiboro Sécure, realizado em 25 de abril de 2012, na capital La Paz)
No fim de 2011, o governo boliviano enfrentou uma de suas piores crises
ao insistir em construir uma estrada amazônica que não conta com os
pré-requisitos técnicos, ambientais e sociais estabelecidos pela
Constituição.Após quatro anos de sucessivas tentativas de diálogo com o governo e de reivindicarem ser escutados antes da contratação e início das obras encomendadas à empresa brasileira OAS, os povos indígenas das terras baixas decidiram marchar até La Paz em protesto – recurso extremo usado em apenas sete ocasiões desde 1990. Quando estavam na metade do caminho, o governo decidiu, depois de acusar os dirigentes de estarem a serviço do imperialismo e da direita, deter a 8ª Marcha Indígena. Centenas de homens, mulheres e crianças foram brutalmente reprimidos pela polícia e levados de ônibus até Rurrenabaque, cidade onde estavam aviões das Forças Aéreas designados para transportá-los de volta a seu lugar de origem. A mobilização solidária dos habitantes da zona, apoiados por redes sociais de ativistas de todo o país, impediu a transferência e libertou os manifestantes, que retomaram a caminhada em direção a La Paz. Depois de 66 dias, os indígenas finalmente chegaram à sede do governo e conseguiram aprovar uma lei que proíbe a construção da estrada, cujo trajeto atravessaria o Parque e Terra Indígena Nacional Isiboro Sécure (Tipnis). Com a chegada da marcha à cidade, centenas de milhares de pessoas de diferentes setores sociais saíram espontaneamente às ruas, lembrando as grandes mobilizações que permitiram a restauração da democracia no início da década de 1980 ou a queda do sistema de partidos em outubro de 2003. Temendo as consequências com a chegada dos manifestantes, o presidente Evo Morales abandonou La Paz e denunciou uma suposta tentativa de golpe para destituí-lo. A recepção multitudinária da marcha indígena se converteu na maior expressão de repúdio ao governo por parte do Movimento ao Socialismo (MAS), o mesmo partido do presidente. O bloco social popular indígena que apoiava Evo Morales durante o primeiro governo estava rachado. Não mais As respostas para essa inflexão do governo não são simples, e é oportuno retomar alguns antecedentes. Muito provavelmente por seu respaldo eleitoral incontestável, o governo Morales atuou de forma transgressora em relação à ordem constitucional desde o princípio, colocando-se acima das leis. “Quando meus assessores dizem que algo é ilegal ou inconstitucional, eu respondo: ‘Não mais’. Que os advogados ajeitem as coisas depois, pois foi para isso que estudaram”, declarou mais de uma vez o chefe de Estado. Antes do início da 8ª Marcha Indígena, o presidente afirmou em tom ameaçador que a estrada seria construída, “queiram ou não” os dirigentes indígenas. Outro antecedente é a dupla condição de Morales de presidente do Estado plurinacional e, ao mesmo tempo, dirigente máximo dos plantadores de coca no Chapare, em Cochabamba. No caso do Tipnis, Morales agiu decididamente em privilégio dos colonos que invadiram o Parque Nacional há anos para ampliar a fronteira do cultivo de coca. O presidente não apenas desconhece as formas de vida e subsistência dos povos amazônicos, como também os despreza, considerando-os frouxos e eleitoralmente insignificantes. A combinação da pressão da coca por novas terras de cultivo e essa cultura de transgressão de leis explica, em parte, as razões pelas quais o governo do MAS decidiu pela construção de uma estrada que viola a proteção legal das áreas protegidas e ameaça os direitos territoriais dos povos indígenas reconhecidos pela Constituição. O vice-presidente afirmou que o projeto tem como finalidade conectar a parte ocidental do país com o norte boliviano, fazendo um contrapeso à oligarquia oriental de Santa Cruz, considerada até pouco tempo atrás o bastião da oposição ao MAS. A estrada, porém, não conta com estudo de viabilidade, não possui licença ambiental – pelo menos não na segunda parte do trajeto, a que justamente atravessaria o Tipnis – e tampouco foi submetida à consulta prévia dos povos indígenas afetados. Além da omissão desses requisitos legais, o governo ignorou relatórios da própria Controladoria e do Vice-Ministério de Investimento Público e Financiamento Externo, órgãos que questionaram as condições pouco transparentes ou abertamente ilegais do contrato com a OAS, que por sua vez ganhou um crédito do BNDES. O Movimento sem Medo (MSM), ex-aliado do MAS, entrou com uma ação acusando o contrato de apresentar o orçamento com 30% de superfaturamento, entre outras irregularidades. Mais lenha na fogueira Em vez de corrigir essas ilegalidades e anular a decisão arbitrária que irritou muitos setores sociais, o governo decidiu continuar a ofensiva e criou as condições para que os plantadores de coca que colonizaram ilegalmente a zona sul do Parque – e não fazem parte dele – se manifestassem. Os afiliados ao Conselho Indígena do Sul (Conisur) realizaram uma fraca contramarcha que culminou na aprovação de outra lei, que dispõe sobre a realização de uma “consulta prévia, livre, informada e de boa-fé” para decidir se os indígenas do Tipnis aceitavam a estrada. Mas a consulta não é prévia, pois a estrada já está em construção; não é livre porque será executada pelos funcionários de dois ministérios sem o consentimento dos povos indígenas e contra suas instituições, usos da terra e costumes; não é informada porque não possui estudo de impacto ambiental nem de viabilidade econômica; e não é de boa-fé, pois se argumentou que a recusa da construção da estrada impediria também a chegada de outros programas de desenvolvimento à região em nome da “intangibilidade” do Tipnis. Em resposta a essa nova ofensiva governamental, a Central Indígena do Oriente Boliviano (Cidob) decidiu convocar a 9ª Marcha Indígena em protesto contra o plebiscito anunciado pelo governo. Sem dúvida, será uma mobilização de conteúdo mais político que a marcha anterior. Simultaneamente, o governo iniciou uma intensa campanha de doação de motores, celulares, bolas e jogos para as crianças dentro e fora da fronteira do Parque, solicitando que aceitem a construção da estrada e se comprometam a não participar da nova marcha. O governo acreditou que era possível aplicar a lei de consulta prévia sem a necessidade de anular a legislação que proíbe a estrada, de modo que, legalmente, esse plebiscito se torna inconstitucional, porque consultaria a população sobre um tema proibido pela própria Constituição. Essa inconsistência deveria ser resolvida pelo Tribunal Constitucional recentemente eleito, mas não se sabe se o processo será julgado antes da data da consulta. De todo modo, os executivos do BNDES adiantaram que não podem financiar uma estrada declarada ilegal – anúncio que desencadeou uma curiosa campanha de vários funcionários do governo brasileiro contra a OAS, que culminou na decisão presidencial de anular o contrato com a empreiteira e assumir os possíveis custos derivados da queixa realizada pela empresa perante tribunais internacionais. Não há nenhuma possibilidade de o governo de Morales sair ileso dessa série de ilegalidades, abusos de poder e improvisações. Se a estrada for construída, será à custa da derrota do movimento indígena e do desrespeito à Constituição. Se não for construída, será um retrocesso sem possibilidade alguma de volta aos tempos em que esse governo era considerado indígena e até revolucionário.
José Antonio Quiroga T.
Diretor da revista quinzenal boliviana Nueva Crónica y buen gobierno.Ilustração: REUTERS / Gaston Brito |
quarta-feira, 23 de maio de 2012
Marchas e contramarchas diante da arbitrariedade governamental
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