sexta-feira, 11 de maio de 2012

A disputa Presidencial na Venezuela

Deus entra em campanha na Venezuela

Doença testa a "santidade" de Chávez
Autor(es): Fabio Murakawa | De Caracas
Valor Econômico - 11/05/2012
 

A disputa presidencial na Venezuela, nas eleições marcadas para 7 de outubro, ganhou um contorno inusitado. A religiosidade e a disputa pelo "apoio" de Deus estão no centro das campanhas dos dois candidatos, o presidente Hugo Chávez, que está em tratamento de um câncer, e o representante da oposição, Henrique Capriles.
Por causa de seus programas sociais, Chávez é visto por muitos venezuelanos pobres como uma espécie de Messias. Em seus discursos, faz com frequência referências religiosas e repete que Jesus Cristo é socialista. Capriles — neto de judeus poloneses — também tenta explicitar sua fé cristã. Mantém em seu escritório várias imagens de santos e tenta desqualificar a "preferência" de Jesus pelo chavismo.
"Chávez é um homem que Deus nos mandou, um enviado de Deus. Ele tem sido para nós o máximo. E eu peço a Deus que dê a ele saúde, que cuide dele, porque nós o veneramos. É um homem maravilhoso que nos protege, cuida de nós. Estou segura de que vamos seguir adiante e que o presidente não vai nos deixar só."
A dona de casa Francis Vegas, 57 anos, é uma das milhares de pessoas desabrigadas pelas chuvas que devastaram bairros inteiros na periferia de Caracas em setembro de 2010. Vive desde então provisoriamente em um prédio construído dentro do complexo militar de Fuerte Tiuna, na capital venezuelana. Ganhou do governo, além do alojamento, tudo o que as águas lhe tomaram: geladeira, fogão, máquina de lavar, sofá, mesa, cadeiras. Aguarda ali seu lar definitivo, em um conjunto habitacional a ser erguido pelo programa "Gran Missión Viviendas", o "Minha Casa, Minha Vida" de Chávez.
O apartamento provisório, de dois quartos, sala, uma ampla cozinha, transformou-se em um santuário do presidente. Pôsteres e calendários se espalham pelas paredes, e ela faz questão de mostrar a coleção de camisetas estampadas com o rosto de Chávez. O artigo mais precioso, porém, é o "Chavecito", uma espécie de boneco Falcon versão Hugo Chávez, vendido nas lojas de souvenir bolivarianas da capital a 70 bolívares (cerca de R$ 15 no câmbio paralelo e R$ 30 no oficial). "Foi meu marido quem me deu", diz, orgulhosa, enquanto Anabel, 6 anos, filha da vizinha Marivel Ranjel, maneja o brinquedo. "Viva Chávez!", grita a menina.
A doença do presidente - um câncer sobre o qual há muitas especulações e nenhum diagnóstico confiável - coloca à prova a imagem de super-homem que ele cativou. Segundo analistas, a enfermidade pode ser decisiva nas eleições de 7 de outubro, em que Chávez concorre contra um candidato único da oposição, Henrique Capriles. Pode assustar principalmente os chamados "ni-ni" (nem Chavez, nem oposição), diante da possibilidade de ter à frente do país um líder incapaz de governar. Mas o câncer do presidente venezuelano parece não abalar a fé daqueles que dizem ter se sentido negligenciados por governos anteriores e que foram beneficiados por seus programas sociais.
"Chávez é uma benção, que nos protege e nos dá saúde", afirma Marivel, 42 anos, vizinha de Francis, dizendo-se satisfeita com a assistência dada a seu marido, Carlos Escorche, 38 anos, também vítima de um câncer. "Meu marido lutou e sobreviveu e, com fé, ficou muito melhor. Eu penso que o meu presidente, se ele se cuidar, se a quimioterapia e a radioterapia funcionarem, vai ficar bom."
A falta de clareza do governo em torno da doença de Chávez tem aumentado as especulações sobre seu real estado de saúde. O presidente tem passado mais tempo em tratamento em Cuba do que no Palácio de Miraflores. Críticos afirmam que ele tem governado o país pelo Twitter, tão raras são suas aparições no "balcón del pueblo", sacada do palácio onde ele costumava fazer seus longos discursos.
No escritório de Capriles, imagens da "Virgen del Valle" e de Jesus Cristo
Na semana passada, o colunista Nelson Bocaranda, do jornal "El Universal", escreveu que o presidente mal consegue caminhar - as sessões de radiografia teriam provocado uma fratura em seu fêmur. Bocaranda disse que foi "cuidadosamente montada" uma fotografia divulgada dias antes pelo governo em que Chávez aparecera em pé, chegando a Cuba, ao lado do presidente Raúl Castro. E disse que líder passa por um tratamento psicológico para combater a depressão, devido à gravidade da doença. Bocaranda vem acertando nas notícias sobre Chávez.
A imprensa internacional também especula se Chávez estaria preparando uma transição. Na semana passada, ele criou um Conselho de Estado com amplos poderes, liderado pelo vice-presidente Elías Jaua. Deu ao novo órgão a atribuição de tirar a Venezuela da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que vem apontando violações cometidas na era Chávez - muitas vezes baseadas em denúncias levadas por opositores do governo.
Mas, na opinião de analistas, o novo conselho pode ter a tarefa de conduzir o país, caso o presidente não tenha saúde para tal.
Ninguém em Fuerte Tiuna, porém, sequer cogita a hipótese de Chávez não concorrer à reeleição, muito menos perdê-la. "Não, amigo. Chávez já ganhou. Não diga isso. Aqui ninguém acredita que Chávez vá perder. Aqui somos Chávez 100%. Para mim, Chávez já ganhou", diz Marivel.
Para ela, se Chávez "é uma bênção divina", seu opositor, Capriles, representa exatamente o contrário. "É um satanás, um satânico. Não deveria nem ser candidato."
À parte questões de fundo mais prático, como o combate aos altíssimos índices de violência e a continuidade dos programas sociais, a religiosidade e a disputa em torno da primazia do apoio de Deus estão no centro do debate político venezuelano. Chávez já disse repetidas vezes, por exemplo, que Jesus Cristo é socialista. "O único Cristo que veio à Terra está conosco, apoiando os humildes, os pobres e chamando os ricos à consciência, à paz", disse certa vez. "O primeiro socialista foi Cristo, para nós, para mim, que sou cristão. Alguém imagina Cristo capitalista? Judas, que o vendeu por umas moedas, esse é o capitalista, que vende até Cristo, até o pai e a mãe, pelo dinheiro."
Capriles, por sua vez, também tenta explicitar a sua fé cristã. Neto de judeus poloneses que chegaram à Venezuela fugidos do nazismo, ele mantém em seu escritório duas estátuas e um pôster da Virgen del Valle, padroeira do Oriente Venezuelano, e um grande busto de Jesus Cristo. Demonizado pelo pai do "Socialismo do Século 21", Capriles passou boa parte da última quaresma tentando desqualificar a preferência de Jesus pelo chavismo. "Nesta Semana Santa é bom recordar que Cristo não era socialista nem capitalista, obsessão do eterno candidato [Chávez] com o tema", escreveu em sua conta no Twitter. "Dizem [os chavistas] ser seguidores de Jesus, mas estão bem longe dele."
A disputa eleitoral entre Deus e o diabo não é nova na Venezuela. Segundo Mireya Lozada, diretora do Departamento de Psicologia da Universidade Central da Venezuela (UCV), "o demônio foi um dos eixos da campanha de 2006". "Podia ser a demonização de um candidato ou a divinização de outro. Mas também, na época, Fidel Castro ou George W. Bush podiam ser divinizados ou satanizados."
Para Lozada, "há uma utilização política do imaginário religioso venezuelano por ambos os candidatos". "E com a doença do presidente, se reforçou essa tendência."
Nos últimos meses, em meio às dúvidas sobre sua saúde, Chávez tem frequentemente apelado à ajuda divina por uma cura. "Cristo, não me leve ainda", disse há cerca de um mês.
Para Luis Vicente León, presidente da consultoria Datanalisis, o presidente pode estar se aproveitando das especulações em torno de sua doença para preparar um "retorno triunfal". "É algo uma hipótese a ser considerada", diz.
Ainda é impossível dizer se Chávez esconde seu estado de saúde por causa da gravidade da doença ou por mera estratégia eleitoral. De qualquer maneira, o falatório ao redor da enfermidade do presidente o tem claramente beneficiado, principalmente por monopolizar o noticiário político do país.
Segundo analistas, o câncer de Chávez tem ofuscado as propostas e as ações de Capriles nesse estágio de pré-campanha. E o presidente até ampliou sua vantagem nas pesquisas. Pela Datanalisis, o placar mudou de 44% a 31% para 43% a 26% a favor de Chávez entre o final de março e o início deste mês. Já o GIS XXI, de tendência mais governista, aponta vitória do presidente por 56,5% a 21%.
Para León, a enfermidade do líder venezuelano pode ser uma faca de dois gumes, em termos eleitorais. "A popularidade de Chávez subiu pela solidariedade primária desde o anúncio de seu câncer no ano passado", diz ele. "Mas, em algum momento, a população pode ficar nervosa sobre o que seria a doença de Chávez no futuro, e isso pode prejudicá-lo."
Por outro lado, diz ele, se Chávez manda uma mensagem de que está curado, sua campanha ganha mais força. "Se isso acontecer, Chávez pode manter essa vantagem e até ampliá-la."
No próximo dia 10 de junho, completa-se um ano desde que o presidente anunciou que tinha "uma doença". E os venezuelanos ainda não sabem exatamente qual é a sua real gravidade, o que só ajuda a aumentar a boataria. Em meio ao jogo de desinformações sobre a saúde presidencial, o país especula também quem herdaria o comando do chavismo, caso o líder tenha que sair de cena. Assim como a maioria dos analistas, León aponta quatro grandes candidatos.
"Temos três correntes. O chanceler Nicolás Maduro e o vice-presidente Elías Jaua são próximos de Chávez e têm um certo nível de popularidade frente ao chavismo. Tem os que poderiam preferir os atores mais pragmáticos. Aí está o Diosdado Cabello [atual presidente da Assembleia Nacional].", afirma. "E também a corrente familiar que, pela simbologia, creem que é preciso o sobrenome Chávez para manter a força do presidente. Aí fica o irmão de Chávez, Adán."
Para os chavistas ferrenhos, no entanto, o "Messias" não tem substituto. "Eu me sinto muito tranquila, tenho paz. Se você me pergunta qual outra pessoa seria capaz de conduzir o país, eu não consigo responder", diz Francis Vegas.

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