A crise europeia é política
Autor(es): Sergio Amaral |
O Estado de S. Paulo - 08/05/2012 |
Ao início, a crise europeia era financeira e
decorria do impacto da crise americana sobre os bancos europeus. Em
seguida, tornou-se fiscal, pelos gastos excessivos feitos pelos
governos para proteger o sistema financeiro, evitar a recessão e conter
o desemprego. Hoje é, sobretudo, política. Na aparência, a crise da dívida soberana é apenas econômica e se caracteriza pela inadimplência do governo diante dos seus credores externos, públicos ou privados. Mas, no fundo, é também política, pois a inadimplência leva a uma queda de braço entre o governo e os credores, sobre a repartição dos custos do ajustamento. O credor reluta em aceitar como pagamento menos do que emprestou; o devedor, sob a pressão política causada pela recessão e pelo desemprego, luta para reduzir o débito ou estender o prazo de pagamento. Nos anos 1980 o Brasil teve de rever a sua carta de intenção - assim se chamava o compromisso com o Fundo Monetário Internacional (FMI) - oito vezes, porque não conseguia cumprir com as metas acordadas. Nessa mesma década teve nove ministros da Fazenda. Eles eram incompetentes? Não necessariamente. Sua missão é que era impossível. Na Europa, cinco governos já caíram: na Grécia, na Irlanda, na Itália, em Portugal e na Espanha. Os novos governos na França e nos Países Baixos poderão dar o sinal definitivo de que o ajustamento preconizado pelo pacto fiscal europeu é inexequível. Uma das diferenças entre a crise da América Latina nos anos 80 e a da Europa hoje está em que, no primeiro caso, os credores lograram uma melhor orquestração do processo de reestruturação. O ordenamento não escrito, mas conduzido sob a liderança incontestada dos Estados Unidos, prescrevia a negociação de um país devedor por vez, para reduzir o risco de contágio e de calote coletivo. Na Europa a dívida é mais alta. O endividamento dos 17 países da zona do euro representa 87% do produto interno bruto (PIB) do grupo. O processo de reestruturação vinha sendo conduzido pela Alemanha e, até recentemente, pela França, num contexto mais desorganizado e politizado. Se quisermos encenar a queda de braços na Europa, bastariam duas dramatis personae: como credor, o parlamentar em Berlim, que busca reduzir a fatura do contribuinte alemão; do lado do devedor, o manifestante de rua, antes na Grécia, agora na Espanha, amanhã talvez na Itália, lança o grito de basta: basta de recessão, de desemprego e, sobretudo, do estreitamento das margens de esperança. Ao contrário da visão técnica e muitas vezes economicista de analistas americanos, que já haviam decretado o fim do euro ou, pelo menos, a defecção de vários membros da união monetária, a saída desenhada pelo consórcio franco-alemão privilegiava o projeto político europeu e o salto para a frente. Se não era possível ter uma moeda comum sem uma união fiscal, era preciso começar desde já a preparar esse passo. O pacto fiscal, concluído recentemente, estipulou cortes de despesas e limites para o endividamento, a serem monitorados pela Comissão Europeia. E, ao mesmo tempo, era necessário mobilizar novos recursos para assegurar a liquidez dos bancos. O paradoxo da Europa, neste momento, está em que um plano concebido para proteger e aprofundar o projeto europeu está fazendo o alvo da população se deslocar do Parlamento em Berlim para os burocratas de Bruxelas e contra transferência de poderes para um ente supranacional, a Comissão Europeia. O conflito entre credores e devedores desbordou para a cena política interna. Governos tanto de direita quanto de esquerda não foram capazes de dar uma resposta satisfatória à revolta dos cidadãos na rua ou ao julgamento das urnas. Mesmo a França, que até agora se mantinha firme, ao lado da Alemanha, na defesa da austeridade fiscal, deverá, com a eleição de François Hollande (para suceder ao presidente Nicolas Sarkozy), defender uma revisão dos rumos. Quais serão os próximos capítulos desse penoso e turbulento processo de ajustamento na Europa? As manifestações de rua e o resultado das eleições evidenciam que a austeridade está no seu limite. Que é preciso afrouxar as metas fiscais e dar algum fôlego ao crescimento. É o que já preconizam vários governos, é o que já sinalizou o FMI. É o que já começam a admitir os bancos: é preciso mobilizar mais recursos para suavizar a austeridade, mas, em compensação, os devedores deveriam subscrever o compromisso de reformas estruturais a médio prazo. A música é-nos familiar. Lembra-nos da entrada em jogo do Banco Mundial, na crise latino-americana. O FMI cuidava das metas fiscais e monetárias. O Banco Mundial desenhava as reformas estruturais: privatização, desregulação e abertura da economia. Mais dinheiro em troca de mais condicionalidades. No caso europeu, resta saber quem desempenhará esse papel. Quem redigirá as cartas de intenção, quem desenhará os programa de ajustamento estrutural? O FMI e o Banco Mundial não dispõem dos recursos para se tornarem relevantes diante do peso da dívida europeia, nem contam com o apoio político que lhes foi outorgado, por ocasião da crise latino-americana, pelos Estados Unidos e pela Europa. Atribuir funções semelhantes à Comissão Europeia significaria decretar sua morte política, no momento em que o aprofundamento do projeto europeu implicaria justamente uma transferência adicional de poderes para a Comissão de Bruxelas. Por fim, quando se fala em mobilizar mais recursos para atenuar a austeridade, como já se faz agora, surge sempre a pergunta incômoda: mais dinheiro de quem? Dos governos, dizem logo os bancos; também dos bancos e de investidores privados, retrucam os governos. Esse será, provavelmente, o novo capítulo dessa sequência de quedas de braço. "It is politics, stupid", diria hoje Carville sobre a crise europeia. |
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