América Latina suporta crise europeia, mas não ficou imune
Publicado em Carta Capital 26/04/2010
Os
mercados financeiros internacionais estão preocupados com um
ressurgimento da crise da dívida da Zona do Euro, de olhos fixos na
Espanha, que poderia se tornar o quarto país a precisar de resgate
financeiro. Enquanto a América Latina até agora suportou relativamente
bem os problemas da Europa, não ficou imune. O ritmo do crescimento na
região diminuiu, apesar de esperarmos que ele continue mais forte que a
média global. Mas em um cenário em que as condições da Europa piorem —
ou ocorra mais um choque, como um aumento nos preços do petróleo —
poderá haver mais efeitos secundários nas economias, nos preços dos
ativos e fluxos financeiros na América Latina.
Depois de uma forte recuperação em 2010 para 6%, causada por um surto
de estímulo global, o crescimento na região da América Latina como um
todo desacelerou para 4,4% em 2011. A Economist Intelligence Unit prevê
uma nova desaceleração para 3,7% em 2012, em um contexto de clara
contração na Zona do Euro (esperamos um encolhimento de 0,7%) e um
crescimento abaixo do previsto nos EUA (de 2,2%).
O crescimento na maior economia da região, o Brasil, teve um início
arrastado este ano, depois de despencar para 2,7% em 2011, contra 7,5%
um ano antes. No lado positivo, os exportadores de matérias-primas da
América do Sul continuarão se beneficiando da forte demanda chinesa.
Vários fatores — como políticas macroeconômicas sólidas, a demanda
interna resistente e a recuperação no crescimento da OCDE — vão reforçar
o crescimento latino-americano a partir de 2013 (com crescimento médio
de 4,2% em 2013-16). No entanto, muitos países da região continuarão
vulneráveis a oscilações no sentimento do mercado e às crescentes
pressões inflacionárias.
O balanço externo da região se fortaleceu nos últimos anos, o que
ajudará a fornecer um amortecedor contra choques externos. A dívida
externa está menor em relação ao PIB e as exportações e reservas
cambiais estão em níveis recordes. No entanto, o crescimento das contas
de importação, alimentado pela demanda interna e por moedas locais
fortes, vai superar o crescimento da receita das exportações, resultando
em grandes déficits de conta corrente na região — mesmo para os
exportadores de matérias-primas. Essa situação é especialmente
problemática para a Argentina, para a qual os superávits de conta
corrente têm sido um pilar de estabilidade na última década, dado o
acesso limitado do governo aos mercados internacionais de capital, o uso
de reservas cambiais para pagar suas dívidas externas e a
vulnerabilidade à fuga de capitais.
Oscilações de sentimento
Diante da estreita integração das grandes economias latino-americanas
nos mercados financeiros globais, as moedas locais e os preços dos
ativos foram atingidos por oscilações no sentimento dos investidores.
Mas graças a políticas flexíveis esses choques foram relativamente bem
absorvidos. Em setembro de 2011 a região sofreu um aumento na aversão ao
risco associada aos temores da Europa (com o real brasileiro e o peso
mexicano em queda de 16,6% e 12,3%, respectivamente, em relação ao dólar
naquele mês). Desde o início de 2012, os mercados de ativos de risco
registraram grandes ganhos, enquanto a aversão ao risco diminuía, graças
às operações de liquidez do Banco Central Europeu. Quando os efeitos
destas se dissiparam, porém, a aversão ao risco retornou.
Além das flutuações no sentimento dos investidores, as autoridades
latino-americanas enfrentam outros desafios. Na política monetária e de
crédito elas lutam para atingir um equilíbrio entre sustentar a demanda
interna (para compensar os mercados de exportação fracos na OCDE)
enquanto mantêm a inflação sob controle em meio às pressões decorrentes
dos altos preços dos alimentos e do petróleo. A agressiva série de
cortes de taxas de juros no Brasil (com a última redução de 75 pontos
básicos em 18 de abril situando a taxa básica em 9%, perto do piso
recorde de 8,75%), atesta o objetivo do governo de sustentar o
crescimento. Isto gerou preocupações sobre o compromisso do BC em
alcançar a meta central de inflação (4,5%), e as expectativas
inflacionárias para 2012 e 2013 continuaram subindo.
E se?
Um agravamento da crise da dívida europeia, que prejudicaria as
economias soberanas e os bancos europeus (que estão fortemente
investidos em dívida soberana e já demonstram índices mais altos de
empréstimos inadimplentes em suas outras carteiras), complicaria as
coisas. A Economist Intelligence Unit atualmente atribui uma
probabilidade moderada (40%) de saída da Grécia da Zona do Euro nos
próximos dois anos, e uma probabilidade mais baixa, embora não
insignificante, de uma ruptura da zona monetária (que definimos como a
saída de vários países, incluindo pelo menos uma das grandes economias).
Mas mesmo sem a dissolução da Zona do Euro uma crise financeira
completa a envolver a Espanha ou a Itália, as mais fracas das grandes
economias europeias, seria danosa. Os bancos espanhóis, por exemplo,
foram grandes compradores de dívidas de governos desde que o Banco
Central Europeu lhes deu acesso a empréstimos baratos de três anos,
destinados a reforçar a liquidez em toda a Zona do Euro. O governo não
pode deixar os bancos falirem, assim como os bancos não podem sobreviver
a uma corrida aos títulos do governo. Mesmo que o país possa evitar um
resgate, seus bancos poderão precisar dele em breve.
Se os bancos se enfraquecerem, as linhas de crédito para a América
Latina (incluindo finanças comerciais, que já foram afetadas pelos
temores da Zona do Euro até agora) de entidades europeias e suas
subsidiárias na região poderão encolher, como um primeiro passo. O
impacto sobre as linhas de crédito internacionais também seria sentido
de modo mais amplo, já que um novo “evento” de crédito na Zona do Euro
causaria tensões financeiras globais e um aumento da aversão ao risco
pelos investidores.
Além das condições de crédito internacionais mais rígidas, outros
canais de transmissão incluiriam uma demanda e preços mais baixos para
as exportações da América Latina, e haveria um sério impacto sobre as
empresas e o sentimento dos consumidores na região. Uma crise da dívida
mais profunda também prejudicaria o fluxo de investimento direto
estrangeiro (IDE) para a América Latina, pois a Europa é uma fonte
importante de IDE para a região. No caso de o crescimento econômico da
China desacelerar mais acentuadamente do que se espera (atualmente
imaginamos um crescimento do PIB de 8,3% este ano), a demanda e os
preços para os exportadores de matérias-primas sul-americanos sofreriam
ainda mais.
Bancos europeus recuam
As pressões sobre os bancos europeus desde meados de 2011 já levaram
alguns a vender parte de seus ativos na América Latina para reforçar
seus balanços. Esses ativos locais foram adquiridos por instituições
financeiras latino-americanas, por isso o impacto sobre o crédito
regional até agora foi discreto. Uma nova desalavancagem dos bancos
europeus levaria a novas vendas de ativos. Onde os compradores agirem, o
impacto sobre o crédito na América Latina será limitado. Mas há um
risco de perturbações no crédito se as compras não se materializarem em
tempo.
Os bancos europeus dos países periféricos seriam atingidos de maneira
mais adversa por um choque da dívida europeia. Os bancos espanhóis
representam pouco mais de 40% dos interesses estrangeiros totais na
América Latina. Os empréstimos para bancos regionais da Grécia, Irlanda,
Itália e Portugal são menos importantes. Também pode haver canais
indiretos, como bancos não europeus que estão expostos a um evento da
dívida europeia e também emprestam para a América Latina. Essas linhas
de crédito também poderão sofrer.
Sistemas bancários locais devem resistir
O impacto sobre os sistemas bancários locais seria variável em
relação às ações em ativos totais dos bancos europeus afetados em cada
mercado. O impacto seria atenuado porque muitos bancos europeus (e
outros estrangeiros) que operam na América Latina obtêm a maior parte de
seus fundos localmente.
Além disso, indicadores do setor bancário sugerem que a maioria das
instituições financeiras latino-americanas seria relativamente
resistente a um evento de crédito europeu. Os bancos locais são
razoavelmente bem capitalizados e líquidos. O crescimento do crédito,
incentivado por políticas expansionistas depois da crise financeira
global de 2008-09, hoje está geralmente em desaceleração. Os políticos
da maioria dos países poderiam afrouxar a política monetária (incluindo
reduzir as exigências de reservas) para ajudar a abrandar as tensões
financeiras.
Também haveria certo espaço para políticas fiscais contracíclicas com
o fim de apoiar o crescimento econômico durante o período de crise,
embora houvesse menos capacidade para políticas de estímulo desta vez,
já que nem todo o estímulo anterior foi retirado e os déficits fiscais
estruturais estão ligeiramente mais altos hoje. Alguns países (México e
Colômbia) têm linhas de crédito de contingência do FMI, e outros (no
Caribe e na América Central, por exemplo) provavelmente procurariam o
Fundo com sucesso para obter crédito de contingência.
No entanto, a região ainda sofreria, mais ou menos do mesmo modo que
após o colapso do Lehman Brothers no final de 2008. Uma recessão
europeia mais severa provocada por um agravamento da crise financeira
provavelmente seria mais duradoura do que foi a recessão nos Estados
Unidos depois do colapso do Lehman, e isto teria efeitos adversos nos
fluxos de investimentos e no comércio Europa-América Latina. Nesse caso,
a América Latina poderia sofrer uma perda de até 3 pontos percentuais
do PIB no primeiro ano, ou cair em uma recessão moderada. Ela se
recuperaria gradualmente depois, mas mais lentamente que sua recuperação
de 2010 após a crise financeira global de 2008-09.