segunda-feira, 23 de abril de 2012

Sem reforma do partido, uma Primavera Chinesa é inevitável

Sem reforma do partido, uma Primavera Chinesa é inevitável

The Observer/Publicado em Carta Capital

22.04.2012
Os líderes da revolução estão mortos há muito tempo e foram substituídos por uma elite administrativa competente mas podre. Foto: Liu Jin/AFP

Por Will Hutton

A detenção domiciliar da importante autoridade comunista Bo Xilai, até recentemente o político mais popular da China, hoje despido de seus títulos, enquanto sua ambiciosa mulher, a advogada Gu Kailai, é acusada de envolvimento no suposto assassinato do empresário britânico Neil Heywood, ex-membro da Harrow School, é uma história que tem de tudo. O sistema de classes britânico encontra os escuros labirintos internos do Partido Comunista Chinês para criar o maior escândalo político da China em décadas. A mídia estatal chinesa está hoje em ritmo acelerado para retratar Bo e Gu como um casal descontrolado, louco por poder, que foi trazido de volta para o regime da lei pelo partido sábio, que tudo vê.
O resto do mundo parece pronto para entrar no jogo. Bo era um político populista perigoso, uma regressão aos períodos mais sombrios e turbulentos da história recente da China. Todo o processo pelo qual ele foi derrubado pode ter ecos da política da antiga corte imperial chinesa, mas é eficaz. O ato foi feito, os reformistas continuam no controle, e David Cameron aplaudiu a investigação sobre a morte de Heywood e as prisões que resultaram.
Mas esse episódio é muito mais importante que um poderoso político sendo esmagado pela máquina comunista. O que muitos poucas pessoas reconhecem é a enorme crise de legitimidade do Partido Comunista. A batalha entre Bo Xilai e a liderança é sobre muito mais que o modo como ele adquiriu sua fortuna pessoal, que lhe permitiu educar seus filhos nas melhores escolas públicas britânicas. Tem a ver com encontrar uma resposta para a questão da legitimidade. A menos que uma estratégia convincente seja desenvolvida em breve, uma Primavera Chinesa em algum momento da próxima década parece quase certa.
O direito do partido a governar é que ele conduziu a revolução comunista, a aurora de um paraíso igualitário em que a legenda, como defensor do proletariado, deveria governar a economia e a sociedade harmoniosamente, em nome de todos. Mas se o crescimento da China foi notável e 400 milhões foram tirados da pobreza, o país tem claramente muito pouco a ver com o socialismo ou um paraíso igualitário. Os líderes da revolução estão mortos há muito tempo e foram substituídos por uma elite administrativa competente mas podre, que se parece cada vez mais com o mandarinato confuciano que a revolução derrubou.
Foi criado um modelo econômico corporativista obscuro, em que indivíduos privilegiados, especialmente os chamados príncipes — filhos e filhas de ex-líderes revolucionários, como Bo Xilai e sua mulher (ambos filhos de generais revolucionários) –, enriquecem impunemente. Não há lei imparcial; nem verificações e balanços; nada é confiável. As autoridades do partido não podem alegar que são heróis revolucionários como motivo para manterem os cargos; são administradores corruptos prestes a dar a retribuição por aumentar os padrões de vida. Mas se eles falharem está claro que todo o edifício vai implodir.
O primeiro-ministro Wen é o político mais consciente da crise iminente. Ele pediu desculpas em público a seus concidadãos por não fazer mais para promover a causa da responsabilidade e o regime da lei enquanto está no cargo. Também tem uma visão clara da fragilidade da economia chinesa, cujo crescimento é desequilibrado, descoordenado e insustentável, como ele advertiu constantemente.
Depois da prisão de Gu, ele não fez referência à linha oficial do partido para justificar o que aconteceu; preferiu citar uma passagem dos Analetos de Confúcio sobre a necessidade de os líderes se comportarem com integridade. Wen sabe que o comunismo como ideologia está morto, daí seu apelo a Confúcio, mais que a Marx.


O desafio de Bo, apoiado por importantes oficiais do exército e do aparelho de segurança, foi este: o partido, ele concordou, tinha de continuar a adotar o que Deng Xiaoping chamou de “economia de mercado socialista”, mas precisava fazer mais para enfatizar o componente socialista, de outro modo a crise de legitimidade o arrasaria. Por isso, enquanto era prefeito de Chongqing ele lançou uma forte medida anticorrupção, prendendo publicamente centenas de autoridades.
Bo distribuiu ajuda para milhões de pobres e ex-integrantes do partido enquanto justificava suas ações com referências a Mao, e não a Confúcio — e com cantorias organizadas de canções da revolução cultural. Ele lançou um reverdejamento da megalópole, plantando árvores e despoluindo o ar, enquanto cortejava o investimento estrangeiro para impelir o crescimento econômico. Foi o modelo de um novo tipo de autoridade comunista rigorosa, rigorosamente nacionalista — e extremamente popular.
Sua ameaça era dupla. Primeiro, representava um novo fenômeno — um político carismático preparado para agir sobre a desigualdade e a corrupção com uma base popular. Mas em segundo lugar, para os reformistas, ele estava brincando com fogo. Wen tem razão ao declarar publicamente que a revolução cultural não é uma parte da história recente de que todos possam se orgulhar. Pelo menos 500 mil pessoas foram assassinadas sumariamente. Mas Bo estava associando o combate à corrupção e a redução da desigualdade com tal “comunismo verdadeiro” — minando diretamente a atual posição ideológica do partido e agravando sua crise de legitimidade.
Então precisava haver uma resposta. Não houve autópsia de Heywood, assim dando ao partido liberdade máxima para agir, não em nome da justiça, mas do que a facção no controle considerasse do interesse do partido. Haverá um julgamento de fachada que dará o resultado certo, mas a ala reformista ainda enfrenta o desafio de conquistar legitimidade. O excesso de exposição dos erros de Bo Xilai vai confirmar como vive a elite; e com menos visibilidade não haverá caso.
Pior, Wen pode contorcer as mãos por seus erros, temendo que o governo não consiga mais suportar projetos de infraestrutura que dão prejuízo para gerar crescimento — rapidamente caindo para seu nível mais baixo em muitos anos. Mas ele nada fez para mudar as coisas principalmente porque nessa situação nada pode ser feito. A China precisa se tornar uma economia “normal” com centros plurais de tomada de decisões, uma capacidade nativa de inovar e menos dependência de fluxos de crédito e gastos de infraestrutura dirigidos pelo Estado. Mas isso é incompatível com ser um Estado de partido único.
Os líderes da União Soviética enfrentaram dilemas semelhantes no início dos anos 1980. Depois de 60 anos, as revoluções perdem legitimidade e problemas econômicos se tornam intratáveis. O grupo ao redor de Gorbachev decidiu que não havia opção senão acelerar as reformas. A nova liderança chinesa, decidida a assumir o comando por mais um ciclo de dez anos neste outono, tentará seguir sem muitas mudanças.
Mas o desafio de Bo sobre a legitimidade permanece. Se não houver uma mudança vinda de cima, ela virá de baixo. Uma Primavera Chinesa é muito provável em algum momento nos próximos dez anos. Até aí nós sabemos. Só não sabemos quando.

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