O fim do chavismo?
O segredo mantido pelo presidente Hugo Chávez sobre a natureza exata de sua doença sempre sugeriu que se tratava de um câncer de mau prognóstico (confira A política da doença, em -CartaCapital 701)*. O anúncio da recaída e da quarta cirurgia em 18 meses indica que a esperança de um milagre não se realizou. A última operação foi bem-sucedida segundo os boletins oficiais e os cubanos certamente se empenharam pelo homem que tirou Cuba do isolamento e da crise a sufocá-la desde o colapso da União Soviética. A medicina tem limites e a recuperação seria “complexa, difícil e delicada”, admitiu seu vice e chanceler Nicolás Maduro.
Antes de partir para Havana, o líder bolivariano admitiu pela primeira vez que podederia ocorrer algo para “inabilitá-lo de alguma maneira” e pediu que nesse caso o povo venezuelano eleja Maduro.
A notícia da recaída atropelou a campanha para as eleições dos governos e assembleias estaduais em 16 de dezembro. Depois da reeleição do presidente, o desfecho da disputa pelo governo do estado de Miranda, entre o ex-candidato presidencial da oposição Henrique Capriles e o ex-ministro e ex-vice chavista Elías Jaua, deveria ser o fato político mais importante, pois definiria se Capriles terá fôlego para liderar a oposição nos próximos seis anos. Agora, isso passou a segundo plano. Mais importante, para os analistas, -será sentir nas ruas e nas urnas se a -doença do líder levou desânimo a seus eleitores e militantes ou os mostra dispostos a construir um chavismo sem Chávez.
Apesar das esperanças declaradas da oposição venezuelana e das direitas -latino-americanas e estadunidenses, o falecimento de Chávez não significa a morte do chavismo. O varguismo permaneceu no poder por uma década após o suicídio de Getúlio Vargas em 1954 e foi a principal referência da oposição até ser superado pelo PT em 1989. E o peronismo manda na Argentina de hoje, quase quatro décadas após a morte de Juan Perón em 1974.
Chávez já governou a Venezuela por quase 14 anos, pouco menos que a duração da primeira era Vargas (1930-1945) e bem mais que a soma dos dois governos de Perón (1946-1955 e 1973-1974), com a diferença de ter sido sempre -escolhido em eleições livres e sem fraudes (com forte ajuda da máquina estatal, sim, mas é outra questão). Tanto quanto ambos, se não mais, transformou seu país de forma a deixar sua marca por muito tempo e influenciou mais os rumos das nações vizinhas que qualquer um deles. Pode não ser mais o sucessor aparente de Fidel Castro como porta-voz das esquerdas latino-americanas (e não é impossível que o idoso cubano lhe sobreviva), mas tudo indica que seu futuro como símbolo, ao menos, parece tão assegurado quanto o de Che Guevara, Salvador Allende ou o próprio Simón Bolívar. Mas símbolo do quê, exatamente?
O mundo ouviu falar do tenente-coronel Chávez pela primeira vez em 4 de fevereiro de 1992, quando liderou um golpe fracassado contra o governo de Carlos Andrés Pérez. Para os jornalistas de fora, soou como uma quartelada latino-americana como qualquer outra, mas tanto o líder como as condições de seu país eram muito peculiares.
O primeiro governo de Pérez, em 1974-1979, cumpriu o programa -oficialmente social-democrata de seu partido Ação Democrática e foi relativamente progressista. Reatou relações com Cuba, apoiou o retorno do socialista Felipe González à Espanha após a morte de Franco, combateu os regimes de Augusto Pinochet, no Chile, e Anastasio Somoza, na Nicarágua, e ampliou políticas sociais com base no aumento da renda das exportações proporcionado pelos choques do petróleo.
Mas ao mesmo tempo reprimia as guerrilhas comunistas no interior. E o então capitão Chávez, enviado a combater os guerrilheiros do partido Bandera Roja, de linha albanesa, veio a simpatizar com sua causa, embora não aprovasse seus métodos e se indignasse com a tortura no Exército e a corrupção visível nos meios militares tanto quanto nos civis.
Segundo o próprio Chávez, sua simpatia pelas esquerdas vinha de antes. Foi inspirado em especial pelo general e líder peruano Juan Velasco Alvarado, que conheceu como cadete ao participar no Peru das comemorações dos 150 anos da Batalha de Ayacucho, na qual Antonio José de Sucre, lugar-tenente de Bolívar, conquistou a vitória final sobre os espanhóis nas Américas. A partir de 1974, Chávez leu avidamente os livros e discursos de Velasco e fez amizade com o filho do coronel e líder panamenho Omar Torrijos, outro militar que promovia o nacionalismo, a reforma agrária e o combate aos privilégios das elites. Em 1977 criou uma organização clandestina, o Exército de Libertação do Povo da Venezuela e começou a buscar contatos com a esquerda civil. Ao se tornar organização cívico-militar, veio a se chamar Movimento Bolivariano Revolucionário 200 ou MBR-200, em homenagem aos 200 anos de Simón Bolívar (nascido em 1783), herói da América Latina e especialmente de Chávez, fascinado por sua vida e pensamento desde a juventude.
Enquanto isso, a guerra entre o Irã e o Iraque, o aumento da produção petrolífera fora da Opep e os conflitos internos do cartel derrubaram o preço da mercadoria e a Venezuela, como muitos outros integrantes da Opep, enfrentou dificuldades sérias.
Em 1988, Pérez candidatou-se de novo e fez campanha atacando o FMI como “uma bomba de nêutrons que mata as pessoas, mas deixa os edifícios de pé” e os funcionários do Banco Mundial como “genocidas a serviço do totalitarismo econômico”. Mas, ao vencer e tomar posse em 2 de fevereiro, de 1989, aceitou de imediato o pacote neoliberal -imposto -pelos EUA e pelo FMI em troca de um empréstimo de 4,5 bilhões de dólares. Isso incluiu a retirada súbita dos subsídios aos combustíveis, com um impacto brutal nos preços dos transportes e no custo de vida.
Não foi o único latino-americano da época a eleger-se com um discurso nacionalista e popular e aderir ao Consenso de Washington após a posse. Carlos Menem, na Argentina, foi outro exemplo notório. Mas a virada de Pérez foi mais -chocante, por sua história e por governar um país mais desigual, onde os desfavorecidos eram ampla maioria. A frustração popular explodiu com uma revolta sem precedentes no país, o Caracazo de 27 de fevereiro. A repressão aos saques e depredações pelo Exército e pela polícia política (a Disip) deixou mais de 2 mil mortos, a grande maioria gente pobre dos chamados cerros, as favelas da periferia de Caracas, que foi sepultada anonimamente e em segredo, em valas comuns.
O evento tornou-se um divisor de águas na história da Venezuela, tanto quanto o Bogotazo, de 1948, na Colômbia. Perderam legitimidade tanto Pérez quanto o sistema político criado pelo chamado Pacto de Punto Fijo, quando, após a queda do ditador Pérez Jiménez, os principais chefes políticos se reuniram na povoação do mesmo nome na casa de Rafael Caldera, líder do democrata-cristão COPEI e acertaram um regime de eleições livres, mas limitadas na prática à alternância de seu partido com a social-democrata ACD e de Caldera, com o banimento dos comunistas.
Foi nesse contexto que Chávez e o MBR-200 tentaram o golpe de fevereiro de 1992. Mobilizaram-se em várias cidades, mas não conseguiram capturar Pérez nem pôr sua mensagem no ar para mobilizar apoio popular. Desistiram após confrontos que deixaram 14 mortos e 130 feridos. Rendido, Chávez falou à tevê e pediu a seus partidários para desistirem “por enquanto”. Tornou-se, porém, um herói. Manifestações populares foram apoiá-lo em frente à prisão. Em novembro, fracassou outra tentativa de golpe militar por simpatizantes de Chávez na Marinha e Aeronáutica que resultou em 172 mortos, 40 dos quais em execuções extrajudiciais de civis e rebeldes rendidos.
Entretanto, Caldera rompeu com a COPEI e aliou-se à oposição de esquerda (inclusive comunistas) na chamada Convergência Nacional, isolou Pérez e o derrubou com um impeachment por corrupção em maio de 1993. Caldera foi eleito em dezembro, pôs fim a 35 anos de bipartidarismo e cumpriu a promessa de anistiar os militares golpistas. Mas a crise piorou e, em 1997, apelou ao FMI, voltou a retirar o subsídio aos combustíveis e ensaiou a privatização do petróleo, o que desencadeou novos protestos e garantiu a eleição de Chávez pelo recém-fundado Movimento V República, em 1998.
A cobertura por The Economist destacava sua promessa de reduzir o déficit público – grande à época, devido à queda do preço do petróleo a meros 9 dólares por barril, um mínimo histórico – e sugeria que, como o argentino Carlos Menem, o novo presidente venezuelano nomearia um economista “independente” como Domingo Cavallo para tranquilizar os investidores. A partir daí, a revista nunca mais deixou de errar em -suas avaliações sobre Chávez, cuja derrota previu praticamente a cada ano desde 2001. Errou ainda mais o presidente da Câmara de Comércio EUA-Venezuela, Antonio Herrera: descrevia Chávez como “um pragmático flexível que abandonou slogans de campanha e colaboradores inconvenientes com a maior facilidade”.
Como indicava o nome de seu partido, Chávez não se propunha apenas a fazer um governo de centro-esquerda, muito menos usar o populismo para alavancar reformas neoliberais. Queria refundar a república e foi o que fez. Tomou posse em fevereiro. Em abril, 88% dos eleitores aprovaram em referendo a convocação de uma Constituinte, formada em 95% por seus partidários, eleitos em julho.
Em dezembro, a nova Constituição foi aprovada com 72% dos votos. Além de rebatizar o país como República Bolivariana da Venezuela, aboliu o Senado, ampliou os poderes do presidente e das Forças Armadas e criou dois novos poderes independentes além dos três tradicionais: o Eleitoral e o Cidadão. A popularidade de Chávez continuou a aumentar, -tanto -pelas obras sociais promovidas pelas Forças Armadas quanto pela recuperação dos preços do petróleo que favoreceu ao acabar com a tradição venezuelana de burlar as quotas da Opep.
Por outro lado, começou a perder aliados de primeira hora, que o acusaram de “autocrata” e a ganhar a hostilidade da classe média e da Igreja. Mesmo assim, em 2000, foi reeleito sob a nova Constituição com uma maioria ainda mais ampla. Tratou de recuperar o controle estatal do setor de petróleo (minado pela abertura do setor a transnacionais desde Pérez e pela autonomia conferida à PDVSA pelo governo Caldera ao preparar sua privatização) e estabelecer a aliança com Fidel Castro, que lhe forneceu professores, médicos e assistência técnica em troca de petróleo.
A fúria da direita desembocou no fracassado golpe de abril de 2002. Chávez foi capturado e por um dia e meio, o empresário petroquímico Pedro Carmona, presidente da federação das indústrias, agiu como ditador com apoio da mídia, de Washington e do FMI, revogou a Constituição, anunciou a ruptura com Cuba e a Opep e anunciou a privatização do petróleo. Acabou expulso pelas massas populares mobilizadas pela militância chavista e pela ameaça de bombardeio pelos militares fiéis ao presidente, que também recebeu o apoio da maioria dos governos sul-americanos. Os antichavistas não se deram por vencidos. Apostavam no desgaste do governo ante a queda do preço do petróleo por efeito da crise estadunidense e promoveram um locaute nacional e a paralisação da PDVSA de dezembro de 2002 a fevereiro de 2003.
Foi um duplo erro da oposição. O golpe revelou seu perfil intolerante, truculento e elitista e a greve deu a Chávez oportunidade e apoio popular para afastar executivos e sindicalistas hostis, demitir 18 mil (metade dos funcionários) e assumir o controle total da estatal no momento em que os preços do petróleo voltavam a disparar e a economia se recuperava, proporcionando uma enorme ampliação dos programas sociais.
Além disso, a tentativa de golpe queimou as pontes entre o governo e a oposição tradicional. Até então, o -discurso chavista mantinha-se próximo daqueles do peruano Velasco e do panamenho Torrijos (embora mais democrático que ambos), identificando o “bolivarianismo” como uma terceira via nacionalista e popular entre o capitalismo e o socialismo clássico. A partir de 2004, radicalizou-se e em janeiro de 2005, no V Fórum Social Mundial, Chávez adotou a palavra de ordem marxista do “socialismo do século XXI”, proposta pelo sociólogo e professor da Unam Heinz Dieterich Steffan, e formalizou acordo com Cuba na Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba). Em 2007, transformou seu movimento no Partido Socialista Unificado Venezuelano (PSUV).
Em 2004, Chávez derrotou nas urnas, sem dificuldade, a tentativa da oposição de tirá-lo do poder por meio do mecanismo de revogação de mandato criado por sua própria Constituição e, em 2005, a oposição cometeu outro grande erro ao boicotar as eleições parlamentares para tentar deslegitimá-las. Conseguiu apenas dar uma maioria esmagadora ao chavismo e lhe possibilitar aprovar o que quisesse.
O prestígio internacional de Chávez cresceu com a eleição de seu aliado Evo Morales, na Bolívia, em 2005, e de Rafael Correa, no Equador, e Daniel Ortega, na Nicarágua no ano seguinte, que se uniram à Alba e promoveram reformas sociais e constitucionais semelhantes. A rejeição das elites acentuou então sua face mais brutal e racista. Chávez não só foi classificado como “tirano” pela mídia conservadora de todo o continente, como regularmente ameaçado de morte e ofendido como “macaco”, “gorila”, “negro” e “zambo (cafuzo) de m…” nos meios de seu país, assim como Evo foi rejeitado por ser “índio” ou “colla”.
Quanto ao desempenho econômico, a era Chávez é medíocre, mas não desastrosa. O crescimento médio do PIB, desde a sua posse é de 2,75% ao ano, melhor que o do México (2,39%), e um pouco abaixo do Brasil (3,20%), Argentina (3,58%) e Chile (3,97%). Nunca houve um programa de estabilização e a inflação segue na casa dos 20% (era 36% no último ano de Caldera), similar à da Argentina (maquiagem à parte) e acima do resto da região. Mas a melhora dos indicadores sociais é clara: a população atingida pela fome (segundo a FAO) caiu de 20%, em 2002, para 2%, em 2012 e o índice Gini de concentração de renda caiu de 48,65, em 1992, para 39,28, em 2009 (o do Brasil foi de 60,02 para 54,27).
A exasperação dos conservadores atingiu o auge após a não renovação da concessão para tevê aberta da arqui-inimiga e golpista RCTV (que continua a transmitir a cabo), mas foi fútil. Apesar das periódicas dificuldades econômicas e das previsões de analistas em contrário, Chávez venceu todas as eleições desde 1998, exceto (por margem minúscula) o plebiscito de 2007 sobre a reforma socialista da Constituição. Isso foi parcialmente compensado pela vitória no plebiscito de 2009, que lhe permitiu candidatar-se ao quarto mandato em 2012 e novamente vencer, apesar da oposição do ex-golpista Capriles ao recorrer a uma estratégia mais inteligente, se comparar a Lula e aceitar o discurso social do bolivarianismo.
E o que é o bolivarianismo? Apesar da ira das direitas latino-americanas e das esperanças de parte das esquerdas, não chega a ser socialismo no sentido que Che Guevara dava à palavra. Chávez teve o apoio de um círculo minoritário de empresários, a chamada “boliburguesia” e não parece cogitar de estatização em massa ao estilo stalinista. Latifúndios foram expropriados para a reforma agrária e algumas transnacionais hostis foram nacionalizadas, mas essas medidas só se destacam contra o fundo de extremismo neoliberal que as precedeu. Em outras épocas, teriam sido reconhecidas como reformistas, como foram as de governos nacionalistas da Índia, Egito, Peru e outros países do chamado “terceiro mundo” até os anos 1970. Em nenhum momento o chavismo censurou a imprensa ou rompeu com as práticas da democracia. Acatou sem discutir a derrota da proposta de mais “socialismo”, em 2007, e o ímpeto reformista arrefeceu à espera de condições políticas mais favoráveis.
O que não dá para negar foi seu caráter personalista e supercentralizado. A teimosia de Chávez em decidir sobre praticamente tudo, não designar sucessor, romper com ex-aliados que dele discordavam e conferir poder demais a incompetentes ou corruptos que mostrem fidelidade incondicional prejudicam visivelmente sua popularidade. Nem por isso ele mudou de atitude, mesmo ao saber da gravidade de sua doença. Assinou leis e decretos no leito do hospital e, como se pensasse ser imortal e insubstituível, não cogitou de um afastamento temporário e muito menos ceder a candidatura. Até o gesto simbólico de 10 de dezembro, no qual entregou a espada de Bolívar, símbolo do poder presidencial, a Maduro.
Apesar dos defeitos, Chávez permanecerá como um rosto – talvez não o mais bem-sucedido, mas certamente o mais ruidoso e expressivo – da virada histórica da América Latina deste início do século XXI, na qual as massas populares nativas e mestiças, após cinco séculos de marginalização, começam a conquistar a inclusão econômica e o protagonismo político e as elites a ceder parte do que sempre julgaram ser seu direito de nascença. Não se trata de ideias fundamentalmente novas, mas de dar conteúdo real a uma retórica nacionalista que é moeda corrente, mas sem lastro, desde o tempo de Bolívar – o que se mostra, para os privilegiados, muito mais assustador.
Por suas origens e pela coerência, embora rude e teimosa (e nem sempre perspicaz), com os próprios ideais declarados, o venezuelano conquistou um papel simbólico que líderes mais pragmáticos e ambíguos não podem ocupar inteiramente, mesmo se governam países maiores com índices de popularidade ainda mais altos. Seus esforços de cooperação e articulação ideológica internacional contra o imperialismo ganharam uma projeção que ultrapassa o continente: as esquerdas francesas e gregas, por exemplo, admitem sua influência. Com um rosto com o qual o povo pode se identificar, desafiou as elites e as potências com uma voz que o cidadão comum pode entender e esforçou-se por cumprir suas promessas e encorajar as massas a se apossar de fato da pátria que sempre lhe disseram ser sua, sem que isso saísse da teoria. É bem possível que, como outros líderes do passado, inspire gerações – e se falhar nisso, terá sido mais pela relutância em fortalecer discípulos e sucessores com luz própria do que por quaisquer outros erros.
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