terça-feira, 5 de março de 2013

Cura da Aids em bebê divide os cientistas

Cura da Aids em bebê divide os cientistas

Cura do HIV em criança exige cautela
Correio Braziliense - 05/03/2013
 

O anúncio de que o vírus HIV sumiu após o tratamento feito numa criança dos EUA foi recebido com cautela pelos médicos. Para alguns especialistas, a técnica tem riscos e não seria alternativa de combate à doença.

Para a OMS e especialistas, o caso de um bebê que teve o vírus da Aids controlado mesmo depois de o tratamento ser suspenso requer mais estudos. A técnica não pode ser considerada uma alternativa de combate à doença, pois seria muito arriscada Bruna Sensêve
O caso do primeiro bebê a obter a cura da infecção pelo vírus da Aids, anunciado durante a 20ª Conferência Anual sobre Retrovírus e Infecções Oportunistas (CROI), nos Estados Unidos, movimenta a comunidade científica mundial. A criança adquiriu o HIV da mãe, soropositiva, durante o parto, mas, depois de uma intensa e precoce terapia com antirretrovirais, deixou de apresentar níveis detectáveis do micro-organismo, mesmo com a suspensão da medicação. O caso — apresentado pela equipe da infectologista Deborah Persaud, do Hospital Universitário Johns Hopkins, em Baltimore — foi comemorado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mas a entidade, assim como especialistas da área, pediu ontem muita cautela sobre o episódio, já que a descoberta ainda precisa de confirmações.

Antecipado no fim de semana pelo jornal The New York Times, o caso foi apresentado à comunidade médica na manhã de ontem. O coordenador do Laboratório de Pesquisa em Infectologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia, Carlos Brites, acompanhou o evento e detalhou ao Correio o relato feito pelos autores do trabalho. Segundo ele, os pesquisadores contaram que a mãe só foi diagnosticada como portadora do HIV ao chegar, já em trabalho de parto, a um hospital no estado americano de Mississipi . Todos os protocolos para diminuir as chances de transmissão do vírus à criança foram realizados, mas não foi possível impedir a infecção. Logo nas primeiras 24 horas, um exame detectou a presença do HIV, e o bebê passou a receber antirretrovirais 30 horas após o nascimento (veja ao lado).

Uma bateria de 16 testes foi feita na criança durante o primeiro mês de vida. Todos os exames confirmaram a infecção e registraram a multiplicação do HIV. “O vírus foi detectado em vários momentos, mostrando que ele tinha adquirido a infecção, e que não se tratava de um erro de laboratório ou algo do tipo”, contou Brites. A confirmação feita pela equipe refuta muitas indagações levantadas por especialistas da área após a primeira divulgação, no domingo. A principal dúvida antes da apresentação de ontem era se o bebê estava realmente contaminado.

O questionamento fazia sentido. Na transmissão vertical, essa confirmação ocorre, geralmente, seis meses após o nascimento. Isso porque os anticorpos da mãe e do bebê se misturam, ficando difícil identificar se as células que combatem o vírus observadas nos testes são, de fato, produzidas pela criança para combater a infecção ou se têm origem materna (nesse caso, o filho só herda as células de defesa, e não o HIV). “Ficou claro que esse tipo de erro não é uma possibilidade. Foi uma sequência grande de testes muito sofisticados que confirmou a infecção”, atestou o especialista brasileiro.

O que o caso tem de inédito é o fato de o paciente ter continuado com uma presença reduzidíssima do HIV no organismo meses depois de a medicação ter sido suspensa. Até a criança deixar de tomar os remédios, a equipe do Johns Hopkins realizou o procedimento considerado padrão nesses casos, mantendo o tratamento constantemente. Contudo, quando o bebê estava com 1 ano e 6 meses, a mãe parou de levá-lo ao hospital, interrompendo a terapia.

Cinco meses mais tarde, ela voltou. A expectativa dos médicos era observar elevados níveis de vírus no sangue. Surpreendentemente, os exames não confirmaram o quadro de piora. A equipe observou que o HIV não estava mais presente no sangue da criança e que algumas poucas células, só detectadas com tecnologia avançada, não se replicavam, mesmo na ausência do tratamento. “Provavelmente, a introdução precoce da terapia evitou que a infecção se instalasse definitivamente. É um caso que se junta ao do paciente de Berlim”, acrescentou Brites.

Funcional
O coordenador do Comitê de Retrovirose da Sociedade Brasileira de Infectologia e professor de imunologia clínica e alergia da Universidade de São Paulo (USP), Esper Kallás, explica que a cura do bebê é chamada de funcional, pois o vírus, apesar de controlado, ainda está presente no corpo da criança. Assim, não é possível saber se o vírus pode voltar a se manifestar.

Os níveis não detectáveis de HIV encontrados no bebê são comuns em pacientes que estão sob terapia antirretroviral, mas não se mantêm quando a medicação é retirada. Uma vez iniciado, o tratamento é para a vida toda. “Se for retirado de uma pessoa que toma o coquetel hoje, em uns 15 dias o vírus volta a ser detectado no sangue. O acaso de a mãe suspender o tratamento por conta própria proporcionou essa observação”, observa Kallás.

O professor lembra ainda que uma parcela muito pequena (menos de 1%) de adultos soropositivos apresenta quadros semelhantes. “Espontaneamente, eles parecem controlar o vírus, mas infelizmente são muito poucos. O que faz com que eles controlem, a gente não sabe.” A própria natureza do experimento não é passível de replicação, pois a interrupção do tratamento em um recém-nascido pode piorar o estado de infecção. “É antiético propor um estudo desses. A mãe, nesse caso, suspendeu porque quis, colocando em risco a saúde da criança”, pondera.

Para o infectologista Alberto Chebabo, do Laboratório Exame e do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), se os resultados anunciados realmente forem verdadeiros, o estudo é uma confirmação do que já era imaginado pela comunidade médica. Chebabo explica que, atualmente, é possível reduzir a carga viral a níveis não detectáveis no sangue, mas o vírus permanece presente no organismo em locais denominados de reservatórios ou santuários. Ali, estão células infectadas do sistema imunológico que não passam na corrente sanguínea. Estão no cérebro, no intestino ou outras áreas que a droga não consegue atuar adequadamente.

“O que pode ter acontecido é que não houve tempo de o vírus evoluir para esses santuários”, analisa. “O resultado pode confirmar a teoria de que, se conseguirmos eliminar esses reservatórios, conseguiríamos a cura. Porém, é só o primeiro passo.”

Transplante

O americano Timothy Brown é considerado o primeiro caso de cura do HIV. O método usado ficou conhecido como cura por esterilização. Ele tomava o coquetel contra o HIV quando foi diagnosticado com leucemia. Brown passou por uma agressiva quimioterapia que destruiu sua medula e precisou receber um transplante com células-tronco. Seu doador possuía uma mutação genética que o tornava naturalmente resistente à infecção pelo HIV. Depois da cirurgia, realizada em Berlim, o vírus não voltou a se replicar no organismo do americano.

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