Análise de dados mostra que a nota da redação está diretamente ligada à renda familiar dos candidatos
Criado
para democratizar o acesso ao ensino superior no país, o Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem) não conseguiu se esquivar das desigualdades do
Brasil. Uma análise do banco de dados do Ministério da Educação (MEC),
realizada pelo GLOBO, mostra que a prova vem refletindo as conhecidas
diferenças socioeco-nômicas do país. O levantamento deixa evidente que o
desempenho dos participantes está ligado a sua renda. Quanto melhor a
situação financeira e de escolaridade familiar, maior é a nota do
candidato na redação, principal prova do disputado processo de seleção
do MEC.
Para
chegar a essa conclusão, o jornal analisou informações de 3,87 milhões
de candidatos do Enem 2011 que responderam ao questionário
socioeconômico no ato da inscrição e que fizeram a prova de redação
naquele ano. Esses dados são os mais recentes disponíveis em relação ao
exame que se tornou a principal porta de entrada para o ensino superior
no Brasil. Neste fim de semana, acontece a próxima edição do exame, que
tem 7,1 milhões de inscritos.
Ao
comparar renda familiar e desempenho na redação, prova que tem o maior
peso no exame, percebeu-se um aumento contínuo da nota junto com a
situação financeira e a escolaridade dos pais. Enquanto a nota média
entre aqueles com renda de até um salário mínimo foi de 460 pontos, o
grupo com renda acima de 15 salários chegou a 642 pontos. Diferença de
40%.
Na
comparação entre as unidades da federação, essa disparidade é mais
ampla no Piauí, onde a diferença entre a menor e a maior médias é de
50%. Santa Catarina e Amapá são os que apresentam menor discrepância:
27%.
—
O Enem reproduz brutalmente as nossas desigualdades, e outros estudos
que consideraram outras variáveis sociais chegaram às mesmas conclusões.
O pobre não é burro, mas ele participa de um concurso com jovens que
têm acesso a experiências educacionais
muito mais ricas. Nesse Números sentido, a sociedade não se
dá conta de que vivemos uma situação de maior concurso público avaliadas
segundo a rede do país de ensino, as diferenças persistem. Em 2011,
cerca de 1,4 milhão de alunos que fizeram a redação do Enem estavam no
ensino médio. A nota média entre os candidatos de escolas estaduais (78%
desse universo) foi de 486 pontos. A rede municipal alcançou 498. Já a
média entre os colégios privados chegou a 612, pouco abaixo do ensino
federal, com 623. A porcentagem de alunos de escolas federais no Enem,
porém, está em 1,8%.
O
baixo desempenho nas redes estadual e municipal é explicado também pela
renda das famílias. Cerca de 80% dos estudantes das escolas estaduais e
municipais que fizeram o Enem 2011 afirmaram ter renda de até dois
salários mínimos. Na rede federal, esse percentual cai para 55%, e na
privada é de apenas 30%.
Também
há muita discrepância quando se comparam notas entre alunos de baixa e
alta renda dentro da mesma rede de ensino. Nas escolas municipais, a
média entre alunos com renda de até um salário é de 433 pontos, enquanto
entre os de renda de mais de 15 salários é de 553 (diferença de 28%).
Na rede estadual, as notas vão de 443 a 562 (27%). Na federal, de 550 a
689 (25%). E na particular, de 539 a 652 (21%).
DESISTÊNCIA MAIOR NA REDE ESTADUAL
O
coordenador de projetos da Fundação Le-mann, Ernesto Martins Faria,
explica que jovens de famílias com poucos recursos vivem em condições
desfavoráveis que afetam o aprendizado, como, por exemplo, espaço
inadequado em casa para se dedicar aos estudos, baixo acesso a livros e
até mesmo um vocabulário pouco diversificado utilizado pelos pais. Para
Faria, a relação entre desempenho na redação e renda familiar, contudo,
deve ser vista com cautela quando se trata de alunos da rede federal.
—
O patamar das notas dos alunos de baixa renda é bem mais baixo nas
redes públicas estadual e municipal. Esses alunos têm um background
ex-traescolar mais desfavorável. Alunos da rede particular provavelmente
têm pais mais engajados, e o gasto Com educação privada, apesar da
baixa renda familiar, ilustra isso. Já entre os alunos da rede federal,
alguns devem ter passado por processos seletivos que são feitos em
certas escolas. Para alunos que passam por processos seletivos a renda
não é uma boa ilustração do background ou das
oportunidades educacionais — afirma Faria.
Com
poucos recursos e enfrentando situações por vezes desfavoráveis, boa
parte dos alunos da rede pública desiste no meio do concurso. Pelos
dados analisados pelo jornal, quanto menor a renda familiar, menor é a
probabilidade de os alunos participarem da redação, aplicada no segundo
dia de provas. A desistência entre os alunos na rede municipal chegou a
24%, seguida da estadual, com 19,7%. Nas escolas federais, a desistência
foi de apenas 6%, patamar muito próximo da rede privada (5%).
—
Esses dados revelam algo que merece uma maior atenção do poder público.
O Enem gera um incentivo à participação dos alunos, porque eles querem o
ensino superior. Quem faz a redação está envolvido com essa
perspectiva. A desistência maior entre alunos da rede pública indica, a
meu ver, uma falta de perspectiva dos alunos. Eles pensam que não
poderão ser aprovados ou, caso sejam, pensam em como poderão se manter
financeiramente no ensino superior. Isso tudo tem a ver com as políticas
que podem ser criadas para permitir que esses jovens se dediquem aos
estudos ou possam se manter durante a faculdade — observa Faria.
FALTA DE PROFESSORES PREJUDICA ESTUDANTE
Aluna
do Colégio Estadual João Alfredo, Rayane Florêncio, de 17 anos, vai
fazer o Enem este ano. A moradora do bairro de Jacaré, na Zona Norte,
ficou sem professor de química durante meses, e está sem professor de
geografia devido à greve de profissionais da categoria nas redes
estadual e municipal do Rio. Para correr atrás, entrou num cursinho
pré-vestibular comunitário.
—
Gostaria de estar num colégio particular para não ter esses problemas,
mas não teria como pagar — conta a aluna, filha de um caminhoneiro e uma
dona de casa, cujo sonho é estudar Letras na UFF. — Tenho um pouco de
medo. Sei que a prova vai cobrar coisas que não aprendi.
Até agosto, Rayane trabalhava numa pizzaria à noite, para ter seu próprio dinheiro, mas isso atrapalhava demais sua preparação.
— Tinha a escola pela manhã e, depois, o cursinho das 13h às
18h. Saía correndo para o trabalho, onde ficava até meia-noite. Era
cansativo. Abri mão do trabalho para focar no Enem — desabafa.
No
estudo feito pelo GLOBO, também foram comparadas as médias por estados.
Como a participação no Enem é voluntária, os dados servem apenas para
ilustrar o desempenho dos alunos que fizeram as provas, e não para
explicar disparidades socieconômicas nos estados como um todo. No Piauí,
onde a discrepância entre as notas de alunos com baixa e alta renda
chega a 50%, os estudantes de famílias que vivem com até um salário
mínimo tiveram média da redação de 450 pontos, enquanto os com renda
acima de 15 salários alcançaram 676. Em Mato Grosso do Sul, a
disparidade foi de 46%. As menores diferenças foram no Amapá e em Santa
Catarina (ambos com 27%), seguido de São Paulo (33%).
O
impacto da situação socioeconômica no rendimento dos alunos foi
analisado pelo doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP)
Rodrigo Travitzki. Na pesquisa, feita para defesa da sua tese este ano,
ele comparou a média das escolas no Enem e concluiu que mais de 80% das
variações são explicadas por fatores que não podem ser controlados pelas
escolas, como renda e escolaridade familiar.
—
Esse dado revela que a educação de um país não pode ser muito melhor
que o país. As escolas sozinhas não resolvem. Precisamos melhorar as
escolas, mas precisamos também reduzir nossas desigualdades. Minha tese
procurou discutir esse tema, porque não adianta focar no ranking das
melhores escolas do Enem. Acaba virando marketing das escolas, quando
sabemos que elas, sozinhas, pouco podem fazer.
Presidente
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep), órgão do MEC responsável pela aplicação do Enem, Luiz
Cláudio Costa reconhece que o exame, por si só, não vai melhorar os
rumos da educação. Ele sabe das discrepâncias entre as notas de alunos
de baixa e alta renda familiar.
—
Educação é maratona. É preciso transformar toda uma realidade. Nossa
historia é de exclusão, e o Brasil vem mudando isso, colocando jovens
nas escolas. O Enem, assim como as cotas, é uma ferramenta no processo.
Antigamente, dois ou três vestibulares influenciavam muito no ensino, e
só dialogavam com escolas particulares. O Enem promove diálogo com a
escola pública. Mas não é uma mudança rápida
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