Qual a política migratória do Brasil? |
![]() |
Publicado originalmente em Le Monde Diplomatique de 26.03.2012 Caso dos haitianos, embora pouco representativo da realidade migratória brasileira, serviu como laboratório das vicissitudes do “ser potência”. Para estar à altura da inserção internacional que pretende, o país deveria aprovar a “Convenção da ONU para a proteção dos trabalhadores migrantes e membros de suas famílias” |
![]() |
por Deisy Ventura , Paulo Illes |
![]() |
![]() A notícia surpreende por muitas razões. A primeira delas é que o Brasil já possui uma proposta de “Política Nacional de Imigração e Proteção ao Trabalhador Migrante”,2 aprovada, em maio de 2010, pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg). Vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego, mas composto de representantes de diferentes órgãos do governo federal – como os ministérios da Justiça, Saúde, Educação e Relações Exteriores –, o CNIg compreende também representantes das centrais sindicais e dos empregadores, além de observadores da sociedade civil e de organizações internacionais. Estudada e debatida em diversos âmbitos desde 2008, a proposta aprovada pelo CNIg foi submetida a consulta pública e encaminhada à Presidência da República para que entrasse em vigor sob a forma de decreto, até hoje pendente. Portanto, antes que outra proposta pudesse ser elaborada, seria imprescindível explicar por que a proposta do CNIg não serve ao Brasil, além de discutir publicamente quem a elaboraria. A segunda surpresa é ouvir falar em “imigração seletiva” num país que, há muito, teria superado ideias como as de substituição da mão de obra escrava e embranquecimento da população, inspiradoras de políticas migratórias altamente seletivas em outros períodos de nossa história. Somos hoje também um país de emigração. Estima-se que cerca de 3 milhões de brasileiros residam atualmente no exterior, enquanto dados oficiais sinalizavam, até junho de 2011, a presença de em torno de 1,5 milhão de estrangeiros em situação regular no Brasil, a maior parte deles de origem portuguesa, boliviana, chinesa e paraguaia.3 Considerando que se trata de poucos milhares de haitianos em algumas cidades do Norte, fugitivos de uma catástrofe natural e humanitária retumbante – aliás, ocorrida num país diante do qual o Brasil assumiu especiais compromissos, inclusive o inédito protagonismo numa missão de paz (a polêmica Minustah, Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti) – e arribados numa região cujas gigantescas obras carecem de mão de obra, só pode restar a impressão de que a grande notoriedade do caso serviu como um pretexto constrangedor, mas eficaz. A ocasião permitiu erodir a visão do migrante como ser humano em busca de uma vida melhor, titular de direitos e deveres, como aquela propugnada pelo CNIg. Parecíamos estar sob a ameaça de uma verdadeira “invasão haitiana”. Ora, como escreveram o professor Omar Ribeiro Thomaz (IFCH-Unicamp) e Sebastião Nascimento (pesquisador da Flensburg-Universität, Alemanha), “o Brasil nunca foi e segue não sendo destino preferencial de uma migração cuja dinâmica o Itamaraty e outros ministérios insistem em ignorar. Há por volta de 3,5 milhões de haitianos espalhados por dezenas de países em três continentes, todos abrigando comunidades consideravelmente maiores e infinitamente mais bem acolhidas que no Brasil”.4 Contudo, uma desproporcional reação do governo federal destoou de nossa tradição de acolhimento. Assim, o mesmo país que, entre 2009 e 2011, graças à Lei n. 11.961, possibilitou a regularização migratória de mais de 40 mil estrangeiros, bramiu ameaças de deportação e estipulou magras cotas de entrada no país – e logo para haitianos, cujas razões de migrar são por demais conhecidas do Estado brasileiro. Medidas restritivas se fizeram acompanhar por mitos. Por exemplo, o de que dificultar a entrada de pessoas as protege dos “coiotes” (os falsários que organizam a passagem pelas fronteiras ou até promovem o tráfico de pessoas), quando é sabido que, quanto maior for a restrição, mais valorizado é o atravessador. Não é difícil intuir que, sob o prisma individual, o recurso a essa totalmente incerta, cara e perigosa viagem de milhares de quilômetros é sempre o último. Demonização do estrangeiro pobre De fato, a experiência europeia ensina que o tema das migrações é um campo minado de inverdades, justificadas por um espectro que vai do superficial interesse eleitoral até o mais profundo desafio da alteridade.5 Tema de primeiro plano da agenda política na maior parte do mundo desenvolvido, a migração fez-se bode expiatório da profunda crise econômica em curso e grande trunfo dos partidos de direita. Contrariando a maioria dos estudos realizados a respeito, diz-se que o estrangeiro rouba os empregos dos nacionais, abusa dos serviços do Estado e eleva os índices de criminalidade, o que faz dele uma ótima desculpa para os perenizados déficits públicos. Por fim, a pluralidade de cores e de expressões culturais gera grande mal-estar em sociedades nostálgicas, homogêneas, individualistas e pautadas pelo consumo. O resultado é a reversão brutal do direito humanista que se instalava paulatinamente após o trauma da Segunda Guerra Mundial. Em algumas grandes democracias ocidentais, tornou-se crime ajudar uma pessoa sem documentos – o que os franceses chamam de “delito de solidariedade”. Locais de espera pela regularização migratória transformam-se em “campos de retenção”, onde se amontoam desvalidos, apresentados como potenciais criminosos ou interesseiros abusadores das benesses do mundo rico. Dito cordial, e construído por migrantes, tanto internos como externos, estará o Brasil imune à demonização do estrangeiro pobre que grassa alhures? Mais servil à desigualdade do que aberto à diferença, nosso país deve evitar o risco de impingir ao ser humano migrante uma discriminação a mais, além de todas as discriminações que aqui já existem. Depois da divulgação de denúncias de trabalho escravo envolvendo uma grande rede internacional de lojas de vestuário, passaram a pipocar notícias de crimes praticados por estrangeiros, por mais banais que fossem. Algumas delas transmitiam a curiosa ideia de que imigrantes latino-americanos tornavam o centro de São Paulo mais perigoso. A realidade, porém, demonstra o contrário: o migrante não quer problemas com a polícia. Se ele tem documentos, quer mantê-los; caso não os possua, ou estiver tentando obtê-los, é fundamental que passe despercebido. É por isso que a obsessão securitária não tem nexo quando se trata dos processos de concessão de autorização estatal para residência provisória ou permanente. Todo tráfico ilícito, em particular o de pessoas, precisa, sem lugar a dúvidas, ser investigado e combatido. No entanto, não há contradição entre uma boa política de segurança e uma política migratória pautada pelos direitos humanos, capaz de oferecer a perspectiva de integração social, sobretudo por meio do trabalho digno. As evidências que acabamos de descrever infelizmente não reverteram uma verdadeira chaga do direito brasileiro. Ainda está em vigor o Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815, de 1980), triste herança do regime militar. Pior ainda: o Projeto de Lei apresentado pelo Ministério da Justiça em 2009 (n. 5655), que deveria modificá-lo, mantém em sua essência o paradigma da segurança nacional. Esse projeto repousa desde agosto de 2009 na Comissão de Turismo e Desporto da Câmara dos Deputados. Seu texto introdutório ressalta que a migração deve ser tratada como um direito do homem e que a regularização migratória é o caminho viável para a inserção do imigrante na sociedade, além de reconhecer a contribuição dos migrantes para o desenvolvimento do país. Mas muitos de seus artigos mantêm procedimentos burocráticos e mecanismos de ejeção que contradizem suas primeiras palavras. Entre várias outras restrições, o projeto amplia de quatro para dez anos o prazo mínimo de residência permanente no país para que seja requerida a naturalização. À altura da inserção internacional Salta aos olhos que, se quiser deixar para trás o legado da ditadura militar, em lugar de um Estatuto do Estrangeiro, o Brasil precisa de uma Lei de Migrações, capaz de dar forma jurídica a uma política legítima. Ela deve ser acompanhada de emendas constitucionais que eliminem as restrições injustificadas dos direitos dos estrangeiros que figuram na Constituição Federal. A anacrônica negação de seus direitos políticos é uma delas. O Brasil vai ficando isolado num continente em que o direito ao voto dos migrantes já foi reconhecido por Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, México e Peru. A propósito, para estar à altura da inserção internacional que hoje pretende, nosso país deveria aprovar e promover a “Convenção das Nações Unidas para a proteção de todos os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias”, de 1990. A Convenção foi enviada ao Congresso Nacional em dezembro de 2010, e sua tramitação se dá separadamente à do já citado Projeto de Lei sobre o Estatuto do Estrangeiro, o que engendra um sério risco de futura inconsistência jurídica. Em diapasão oposto, o Mercosul tem constituído um espaço fundamental para que um novo paradigma de política migratória seja construído na região. Entre outros, o “Acordo Mercosul sobre residência para nacionais dos Estados partes do Mercosul e do Mercosul, Bolívia e Chile”,6 ao qual recentemente aderiu também o Peru, tem beneficiado centenas de migrantes, podendo ser o germe de uma futura cidadania sul-americana. No entanto, dotar-se de normas avançadas e descartar as contradições não seria suficiente para resolver os problemas que os estrangeiros aqui enfrentam em sua relação com o Estado. O Brasil não dispõe de um serviço de imigração. Para requererem a regularização de sua situação, os migrantes devem dirigir-se à Polícia Federal, cujos serviços são em grande parte terceirizados, desprovidos de formação e mal remunerados. É importante acrescentar que a polícia tende a uma interpretação restritiva das normas que beneficiam os migrantes. Ao buscar a regularização, o migrante, não raro, encontra um calvário, com a exigência de documentos que sabidamente ele não tem condições de apresentar. Num círculo vicioso, a constância da irregularidade gera mais precariedade. Para além das deficiências de atendimento, é preciso entender também que as polícias ainda penam para superar o paradigma da segurança nacional, sucedido pelo ideário da “guerra ao terror”, altamente xenófobo, preconizado pelos Estados Unidos e seus parceiros após os atentados de 11 de setembro de 2001. Que alguns de nossos quadros fossem treinados pelos Estados Unidos na época da Guerra Fria, e em plena ditadura, podemos compreender. Mas em plena democracia, que o peculiar modo de ver o mundo norte-americano prevaleça em nossa maneira de perceber os estrangeiros, convertendo a diferença em ameaça, é algo que, como dever de cidadãos, precisamos impedir. Migrar é um direito humano. Qualquer um de nós já migrou ou pode migrar um dia. O verbo do estrangeiro é estar, não ser. No fundo, o estrangeiro não existe, ou somos nós mesmos, por vezes até em nossa pátria. As inúmeras contradições que cercam o tema das migrações no Brasil justificam, então, a pergunta que intitula este artigo. Afinal, temos uma política migratória? Ou temos aqui, como em diversos outros campos, a ambiguidade que resulta da disputa entre os que pensam uma política de migrações respeitosa dos direitos humanos e outras vertentes que concebem o Estado a serviço das necessidades do mercado, ou de modelos de “segurança” que não são nossos? Em qualquer caso, se o preço do sucesso econômico for repetir aqui o que a Europa e os Estados Unidos têm feito em matéria de migrações, é preciso, enfim, perguntar para que e para quem vale a pena que sejamos “potência”. Deisy Ventura Professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, IRI-USP |
segunda-feira, 26 de março de 2012
Qual a política migratória do Brasil?
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário