Guerra às drogas e territórios em disputa | ||||||
Publicado em Le Monde Diplomatique (Edição brasileira)
Na
prática, a operação na Cracolândia, em São Paulo, não esconde seu
caráter higienista de perseguição aos indesejáveis: moradores de rua,
usuários de crack, prostitutas, vendedores ambulantes, comércios
“irregulares” etc.
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por Juliana Machado Brito | ||||||
“Fase 1: consolidação da área
O trecho acima foi retirado de documento oficial enviado à Guarda Civil
Metropolitana (GCM) pela Secretaria Municipal de Segurança Urbana (nota
de instrução n. 01/2012) de São Paulo, com o teor do Plano de Ação
Integrada Centro Legal, iniciado em 3 de janeiro deste ano, em sua
versão voltada à região da Estação da Luz, estigmatizada como
“Cracolândia”.– início 03/01. Trata-se de operação policial com vista prioritariamente a prender traficantes, usuários de drogas e procurados da justiça com ação de presença. Fase 2: ação social – não previsto início. Fase 3: manutenção da área – não previsto início.” Sob a justificativa de uma suposta “epidemia de crack”, as três esferas de governo se mobilizam para apresentar à sociedade uma proposta de restauração da ordem pública. Quarenta dias depois, a operação apresenta como resultados a dispersão de parte da população de indesejáveis para bairros vizinhos, 232 pessoas presas e 224 internadas.1 O caso da Luz é emblemático: no momento em que o Centro de São Paulo é alvo de uma disputa acirrada entre o capital imobiliário especulativo e os interesses dos setores mais diversos presentes na região, o primeiro passo para a aplicação do Projeto Nova Luz2 e consequente expansão das fronteiras do mercado imobiliário é a expulsão – direta, pela ação ostensiva da PM, e indireta, pela valorização imobiliária – da população pobre. Na prática, a operação não esconde seu caráter higienista de perseguição aos indesejáveis: moradores de rua, usuários de crack, prostitutas, vendedores ambulantes, comércios “irregulares” etc. No mesmo sentido, realizam-se despejos forçados e reintegrações de posse de imóveis vazios, ocupados pelos trabalhadores que disputam a oferta de empregos e de infraestrutura do Centro. Ainda assim, moradores, comerciantes, proprietários e movimentos de moradia têm se articulado para resistir aos efeitos da realização deste projeto, ou amenizá-los, buscando incidir nos escassos canais de participação política, como o conselho gestor das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis). Num contexto em que a PM ganha espaço na gestão do estado (como tem acontecido nas subprefeituras e em outros órgãos municipais e estaduais), ocupando-se cada vez mais de serviços alheios à sua competência legal, o controle e a gestão urbana se desenvolvem como “polícia de costumes e condutas”, que tem na política de drogas proibicionista e repressiva sua ponta de lança. No escopo da guerra às drogas, a ocupação do campusda USP pela PM reflete-se na revista de estudantes em frente à biblioteca, no controle do acesso ao restaurante universitário e na abordagem em espaços de sociabilidade dos jovens, voltando-se também aos crimes relacionados ao consumo de substâncias ilícitas, prioritariamente na moradia estudantil, entre negros, punks e gays. Longe dali, nos bairros periféricos da cidade (e em 72 municípios no país),3 aplica-se a prática do toque de recolher, justificado pela proteção a crianças e adolescentes. A fim de combater o consumo de álcool e outras drogas, conselheiros tutelares e policiais militares se articulam para dispersar e recolher jovens após as 23 horas, restringindo sua permanência e circulação nos espaços públicos. Na região da Luz, o suposto combate ao tráfico resultou no encarceramento dos varejistas, sendo um terço dos presos moradores de rua,4 que comercializam drogas como estratégia de sobrevivência. O resultado da ação policial em nada afeta a rede do mercado ilegal. Curioso constatar que, embora seja a bola da vez, o crack não é a droga mais letal: 84,9% das mortes relacionadas a drogas no Brasil são atribuídas, na verdade, ao álcool.5 Aqui, como nas ocupações militares “pacificadoras” do Rio de Janeiro, mais uma vez o combate aos entorpecentes vem legitimar a onipresença das forças de segurança, que têm como alvo, prioritariamente, condutas de populações específicas. Todas essas situações denotam uma concepção de segurança pública – portanto, de controle de populações marginalizadas – que tem como estratégia central a ocupação territorial de forma ostensiva com o uso de forças militares: uma disputa que também é territorial, ao intervir em um dado espaço. Controlados e videomonitorados, os espaços públicos se reduzem a espaços de circulação e consumo, reservados para poucos. Nas diversas faces da guerra às drogas, que ataca certas substâncias e silencia sobre outras, a militarização do controle e gestão dos territórios se articula com o controle das condutas e costumes, atingindo os corpos pela via da saúde pública, da moral ou do encarceramento.
Juliana Machado Brito
Formada em direito pela PUC-SP e pesquisa megaeventos esportivos,
relações de poder e o estado de exceção, em mestrado no Departamento de
Sociologia da USP. Acompanha a questão do crack e da reurbanização do
centro junto ao Coletivo Desentorpecendo a Razão, do qual participa.Ilustração: Daniel Kondo 1 Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, 13 fev. 2012. 2 Concessão Urbanística Nova Luz: em um perímetro de 45 quadras nos bairros da Luz e Santa Ifigênia, o poder público municipal concede a exploração comercial do território para a iniciativa privada, que poderá instalar ali empreendimentos imobiliários voltados para o capital de grande escala – espaços de cultura suntuosos, escritórios de luxo, hotéis e centros de compra. Como contrapartida, realiza-se a reurbanização da região, por décadas abandonada pelo Estado, de modo que cabem às empresas desapropriações, intervenções urbanísticas e lucros advindos da valorização da terra. 3 Caros Amigos, dez. 2011. 4 Folha Online, 6 fev. 2012. 5 O Estado de S. Paulo, 15 fev. 2012. |
sexta-feira, 30 de março de 2012
Guerra às drogas e territórios em disputa
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