segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Golpe franco no Paraguai

Golpe franco no Paraguai
Os deputados e senadores paraguaios não apresentaram nenhuma prova nem solicitaram que se investigassem os casos mencionados na acusação, porque, segundo o ordenamento jurídico vigente, fatos como esse não precisam ser provados, já que são de "notoriedade pública"
por Raúl Cazal
(Fernando Lugo discursa em Assunção uma semana após o golpe do dia 22 de junho)
O assassinato era o componente que faltava para submeter o presidente paraguaio a um julgamento político. Desde que assumiu a presidência, tentaram processar Fernando Lugo 23 vezes. Na 24ª, venceram. Mas, para isso, seis policiais e onze camponeses tiveram de morrer de forma violenta em Curuguaty, departamento de Canindeyú, ao norte do país. As terras pertencem ao Estado, mas o ex-senador do Partido Colorado, Blas N. Ferreira, se apossou delas na época da ditadura de Alfredo Stroessner.
À tese de enfrentamento entre policiais e camponeses imposta aos meios de comunicação paraguaios por setores políticos, se contrapôs a de franco-atiradores. Contudo, esta última não foi suficientemente divulgada em função dos interesses, dado que os deputados paraguaios já haviam decidido no Parlamento acusar o presidente de “mau desempenho de suas funções”.
O processo político levado adiante pelos parlamentares e que poucas horas depois destituiu o presidente sustentava que Lugo: 1) permitiu, supostamente, uma reunião no Comando de Engenharia das Forças Armadas – onde o delito teria sido a menção do conceito “luta de classes”; 2) dialogou com líderes camponeses sem terra que ocupavam terras de uma propriedade fiscal em Ñacunday, que são do Estado e estão reservadas para a reforma agrária, embora empresários aleguem possuir a titularidade delas – a acusação nesse episódio foi a “falta de resposta das forças policiais ante as invasões de supostos acampados e sem-terra em territórios de domínio privado”; 3) deixou crescer a insegurança; 4) assinou o protocolo de Montevidéu sobre o Compromisso de Democracia no Mercosul (Ushuaia II) na reunião de presidentes do Mercosul, em dezembro de 2011; e, finalmente, 5) permitiu a ocorrência do massacre de Curuguaty.
Os deputados e senadores paraguaios não apresentaram nenhuma prova nem solicitaram que se investigassem os casos mencionados na acusação, porque, segundo o ordenamento jurídico vigente, fatos como esse não precisam ser provados, já que são de “notoriedade pública”. Para os parlamentares, esta se justificaria pelas acusações ao presidente publicadas na imprensa nacional e internacional. Depois dessa etapa, o julgamento político dos parlamentares passa a ser um mero trâmite.
Em 24 horas, a classe política tradicional, representada pelos colorados e liberais, além de outros partidos políticos de direita, decidiu destituir o presidente porque a Constituição concede essa prerrogativa. Os chanceleres da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e seu secretário-geral, Alí Rodríguez Araque, deixaram a reunião da Rio+20 para interceder politicamente diante do iminente golpe de Estado.
O chanceler argentino, Héctor Timerman, em entrevista ao jornalista Martín Granovsky, do jornal Página 12, relatou sua conversa com o vice-presidente Federico Franco: “Eu disse: ‘Olha, não falta muito tempo. O senhor considera justo o que está sendo feito? Pensa que o mundo vai reconhecer essa destituição como um procedimento correto?’. E me lembro de sua resposta: ‘No Paraguai, um vice-presidente tem três funções: presenciar a reunião de gabinete, atuar como elo com o Congresso e assumir a presidência em caso de doença, morte ou destituição do presidente. Vou cumprir a Constituição paraguaia’. Então perguntei se duas horas para preparar uma defesa parecia tempo suficiente. E ele respondeu: ‘Só Deus sabe o tempo que lhe dei’”.
“Minha obrigação é assumir”, reiterou Franco a Timerman quando este lhe solicitou que acompanhasse os chanceleres ao Congresso e dissesse diante deles que Lugo “não havia tido tempo de preparar a defesa e que, portanto, não poderia assumir a presidência em caso de destituição”.

A confiança em Franco
Quando o câncer linfático do presidente Lugo se tornou público, o vice-presidente Franco estava na Colômbia, representando o governo na posse presidencial de Juan Manuel Santos, e sua primeira declaração foi: “Lugo pode confiar em mim para o governo do país”.
Cinco meses antes, Franco havia se reunido com a então embaixadora dos Estados Unidos no Paraguai, Liliana Ayalde, ocasião em que expressou a “péssima gestão administrativa do presidente Lugo, razão pela qual ele merecia um julgamento político”. Essa conversa se fez pública por meio de uma carta do então ministro da Defesa, Luis Bareiro Spaini, enviada à representante diplomática, que, entre 2005 e 2008, foi diretora da Usaid [sigla em inglês de Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional] na Colômbia.
Para viabilizar o julgamento político do presidente, era necessária a aprovação de dois terços dos deputados e senadores dos partidos tradicionais, de acordo com a Constituição de 1992, escrita três anos depois da queda do ditador Alfredo Stroessner. Porém, a Câmara dos Deputados estava inteira contra Lugo, à exceção da deputada Aída Robles, do Movimento Popular Tekoyoya (MPT). Essa maioria esmagadora fez a decisão de submeter o presidente a um julgamento político ser tomada em apenas cinco horas. Constituído o tribunal, o Senado concedeu duas horas para a elaboração da defesa e suspendeu o direito à palavra do senador Sixto Pereira (MPT). Para os senadores, era imperioso que a destituição fosse decidida nos tempos estabelecidos.
“Essas duas horas de defesa concedidas ao presidente democraticamente eleito representam menos do que o tempo de defesa concedido a alguém que passou em um semáforo vermelho”, disse o chanceler argentino Timerman.

Em nome da Constituição
Desde que Stroessner passou a viver exilado no Brasil, em 1989, o Paraguai teve seis presidentes eleitos, dos quais quatro terminaram o mandato. Raúl Cubas Grau, do Partido Colorado, assumiu em 15 de agosto de 1998. Três dias depois, concedeu indulto ao general Lino Oviedo, preso por tentativa de golpe de Estado contra o presidente Juan Carlos Wasmosy no fim de abril de 1996. No quarto dia, setores do Partido Colorado aliados do vice-presidente Luis María Argaña, junto com os liberais (Partido Liberal Radical Autêntico, PLRA) do Encontro Nacional, tomaram a iniciativa de solicitar um julgamento político do presidente Cubas Grau.
O Congresso solicitou a intervenção da Corte Suprema de Justiça na liberdade de Oviedo e, no dia 2 de dezembro de 1998, declarou inconstitucional o decreto de Cubas Grau, que não admitiu a falha. O general ameaçou “enterrar” os juízes que votaram contra sua liberdade. Sete meses depois, em 16 de março de 1999, a Câmara dos Deputados definiu a data do julgamento para 7 de abril. Porém, no dia 23 de março, o vice-presidente Argaña foi assassinado. Os deputados convocaram uma reunião extraordinária para adiantar o julgamento, que contou com o mínimo necessário (um terço dos deputados e senadores) para aprovação. Desse dia até 26 de março, cidadãos se concentraram nas praças de Assunção em repúdio à crise suscitada e foram agredidos por apoiadores de Oviedo que estavam armados com paus e objetos cortantes. Em 26 de março, franco-atiradores assassinaram sete jovens que se manifestavam na praça em frente à Catedral de Assunção. No dia seguinte, Cubas Grau renunciou e foi substituído pelo presidente do Congresso, Luis A. González Macchi, do Partido Colorado – que não convocou eleições e terminou o mandato como “estabelece a Constituição”.
Em 1º de dezembro de 1991, foram eleitos 122 militantes do Partido Colorado para redigir a Constituição de 1992. A Assembleia Constituinte estava formada por 198 integrantes e, com apenas 55,1% dos votos, o Colorado – partido político que apoiou Stroessner durante os 35 anos em que se manteve como ditador – conseguiu maioria absoluta. O PLRA obteve 55 cadeiras; Constituição para Todos, 19; enquanto os partidos Revolucionário Febrerista e Democrata Cristão, 1.
O resultado dessa Assembleia foi a concessão de poderes exagerados ao Parlamento. Em 2004, o doutor em CiênciasJurídicas Daniel Mendonca, em seu livro La máquina de gobernar [A máquina de governar], escreveu que, “tal como está concebido na Constituição, é possível fazer uso excessivo” do julgamento político. Da mesma forma, “as razões pelas quais se aceita tal solicitação [...] são tão genéricas (especialmente a que se refere ao “mau desempenho de suas funções”, segundo a redação do artigo) que praticamente justificam qualquer solicitação apresentada”.
“A única pessoa autorizada a substituir o presidente imediatamente e sem nenhum trâmite é o vice. O processo do honrado Congresso Nacional que culminou no julgamento político de Lugo foi feito de maneira, reconheço, um pouco rápida, e isso foi uma surpresa para mim, para vocês e para todo o povo paraguaio”, foram as primeiras declarações de Franco à imprensa, depois de cumprimentar, sorridente, seus correligionários com as mãos para cima e abraços, como se tivesse feito um gol ou vencido uma eleição.

A confissão dos golpistas
Os políticos tradicionais do Paraguai que haviam forjado o julgamento político contra Lugo sabiam que não contavam com o apoio da Unasul e do Mercosul. Os chanceleres desses países, reunidos no Brasil, deixaram a Rio+20 para tentar impedir o golpe de Estado iminente. Contudo, pouco importavam aos senadores, deputados e ao vice-presidente as consequências que acarretariam ao país por quebrar a ordem democrática.
Desde que o presidente paraguaio assinou o Protocolo de Ushuaia II em Montevidéu, em dezembro de 2011, junto a seus pares de Argentina, Brasil e Uruguai e associados do bloco (Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela), desencadeou-se uma campanha contra esse acordo no Paraguai com o argumento de que se tratava de uma nova Tríplice Aliança contra o país, porque, “em caso de ruptura ou ameaça de ruptura da ordem democrática” em algum dos países envolvidos, o protocolo prevê a possibilidade de “fechar de forma total ou parcial as fronteiras terrestres, suspender ou limitar o comércio, tráfego aéreo e marítimo, as comunicações e a provisão de energia e serviços”. Como dizem os advogados: “Diante da confissão do acusado, não há necessidade de provas”.
Contudo, na região de Mendoza, Argentina, os presidentes do Mercosul decidiram suspender o Paraguai do acordo estabelecido pelo Protocolo de Ushuaia I, assinado em 1998. Essa decisão foi tomada em função da instabilidade política do país, assim como da ameaça de interrupção do processo democrático, como havia ocorrido em 1996, quando o general Oviedo tentou derrocar o presidente Juan Carlos Wasmosy mediante um levante militar.
O Mercosul foi criado em 1991, com a assinatura do Tratado de Assunção. Naqueles anos, a hegemonia neoliberal se impunha com força na América Latina – o nome dado ao bloco de integração regional, Mercado Comum do Sul, não foi por acaso –, e setores do Partido Colorado, liderado por Argaña, eram contra a assinatura do tratado.
Atualmente, 51% das exportações do Paraguai são destinadas ao Mercosul. Em pesquisa para o Observatório da Economia Internacional do Centro de Análise e Difusão da Economia Paraguaia (Cadep), Francisco Ruiz Días, em seu trabalho “O dilema do Tarzan”, afirma que, junto ao Mercosul, o Paraguai tem mais capacidade de estabelecer acordos comerciais com terceiros do que unilateralmente, devido a seu “baixo desenvolvimento econômico”.
Sobre a consideração de diminuir assimetrias econômicas, uma das medidas tomadas pelo bloco em 2005 foi a criação do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), ao qual o Paraguai deve aportar US$ 1 milhão anualmente e, em contrapartida, recebe transferências de recursos não reembolsáveis no valor de US$ 48 milhões.
Entretanto, o presidente da União Industrial Paraguaia, Eduardo Felippo, não considera que houve ruptura da democracia e acredita que a suspensão do Paraguai do Mercosul obriga o país a negociar fora do bloco. Na saída da reunião com Franco, duas semanas depois de armar o golpe parlamentar, Felippo disse que “o Paraguai é o produtor de soja e carne mais importante do mundo, está na lista dos dez primeiros, e todos necessitam disso”.

A terra e o agronegócio
Os camponeses sem terra que reivindicam a efetividade da reforma agrária foram classificados pejorativamente de “carperos” (pois vivem em carpas, barracas, em português). Desde a ditadura de Stroessner, os camponeses foram reprimidos e massacrados, como no dia 8 de março de 1980, em Caaguazú, onde ainda hoje se desconhece o paradeiro dos dez cadáveres que foram enterrados em valas comuns. Os assassinos continuam impunes.
Lugo, em seu último pronunciamento à nação como presidente, disse que se tratava de um golpe da máfia. A justiça paraguaia está sitiada por partidários dos grupos tradicionais que se beneficiam com terras, algumas concedidas por Stroessner. Apesar de muitos terem se apropriado de terras do Estado, o Poder Judiciário sempre sentenciou a favor dos fazendeiros, como no caso de Curuguaty.
“Quando entramos no governo, em 2008, queríamos realizar uma verdadeira reforma agrária e um cadastro de propriedade das terras”, confessou Lugo depois de ser destituído. “O Paraguai tem 406.752 quilômetros quadrados, mas, somando todos os títulos de propriedade rural, fica com 529 mil quilômetros quadrados. Ou seja, algumas terras podem ter dois, três ou até quatro títulos. É preciso ajustar essa conta, mas não é fácil porque depende do Judiciário, e não do Executivo”.
A regularização das terras, contudo, não é o único obstáculo com que deparou Lugo ao chegar à presidência. Dois dias antes de os deputados aprovarem o libelo acusatório contra o presidente por “mau desempenho em suas funções”, o Serviço Nacional de Qualidade e Saúde Vegetal e de Sementes (Senave) recusou a inscrição da semente de algodão DP404BG, comercializada pela empresa transnacional Monsanto como algodão Bollgard. Franco, então, colocou Jaime Ayala, empresário do agronegócio, acionista e presidente da Pacific Agrosciences, empresa que se instalou no país com um investimento de US$ 3 milhões, para dirigir o Senave. Uma das primeiras medidas do novo dirigente – além de demitir mais de duzentos funcionários – foi aprovar a semente antes recusada por não cumprir os requisitos requeridos pelo órgão.
Enquanto o golpe parlamentar era levado a cabo, o jornalista Idilio Méndez Grimaldi revelou que a “Monsanto faturou US$ 30 milhões no ano passado, livre de impostos [porque não declara essa parcela de sua renda] somente com royalties pelo uso de sementes transgênicas no Paraguai”.
O artigo intitulado “Monsanto golpeia o Paraguai”, difundido em meios de comunicação digitais, argumenta que toda a soja cultivada nesse país é transgênica e abarca uma “extensão de 3 milhões de hectares, com uma produção em torno de 7 milhões de toneladas em 2010”.
Martín Almada, ativista paraguaio defensor dos direitos humanos, sublinha que a suposta legalidade constitucional foi referendada por “deputados e senadores que integram um parlamento corrupto”. O golpe de Estado “cheira a dólar”, suspeita.
Aliados aos partidos Colorado e Liberal Radical Autêntico, entre outros de tendência ideológica similar nesse golpe de Estado, estão também a cúpula da Igreja e os setores empresariais e transnacionais do agronegócio – que se negam a pagar impostos e pretendiam realizar um “tratoraço” (greve com a interrupção de vias terrestres com tratores), suspendido logo após a subida de Franco à presidência.
Desde que Lugo assumiu, esses setores não pararam de investir contra o presidente. Em setembro de 2008, com quinze dias de mandato, Lugo denunciou a conspiração de um golpe de Estado contra ele, por parte de Oviedo. No golpe de 2012, esse general apareceu no Congresso, sentado ao lado do senador e presidente do PLRA, Blas Llano, na posse de Franco à presidência. Oviedo se gabou de ser o primeiro a cumprimentar e felicitar o novo ocupante do cargo máximo do governo nacional. “Deus os cria, e eles se unem” é o dito popular que serve de epílogo.
Raúl Cazal
Diretor do Le Monde Diplomatique Venezuela


Ilustração: Mario Valdes / Reuters

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