segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Massacre e estado de emergência: O fim da Primavera no Egito

Massacre e estado de emergência: O fim da Primavera no Egito

Como na era Mubarak
O Globo - 15/08/2013
 

Governo indicado por militares massacra quase 300 partidários de presidente islamista deposto, traz de volta estado de emergência e retoma, na prática, lei marcial vigente na ditadura
Desespero. No acampamento pró-Mursi montado na mesquita de Rabaa al-Adawiya , no Cairo, uma mulher tenta impedir o avanço de um trator e proteger um ferido: além de bombas de gás, munição viva causou mortos e feridos
Força. Com apoio do Exército, tropas da polícia de choque se preparam para invadir mesquita em Rabaa Adawiya
CAIRO
Ao fim de um dia de horror que terminou com pelo menos 278 mortos, dois mil feridos, baixas no governo, um decreto de estado de emergência pelo período de um mês e a imposição de um toque de recolher nas ruas, foi uma declaração do ministro do Interior, Mohamed Ibrahim, o alvo da maior preocupação dos egípcios. O primeiro-ministro interino, Hazem el-Beblawy, defendeu a sangrenta ofensiva contra dois acampamentos de civis islamistas que defendiam a restituição do presidente deposto Mohamed Mursi ao poder. Mas Ibrahim fez a única promessa que arrepia igualmente a laicos e religiosos no Egito: a volta da estabilidade da ditadura de Hosni Mubarak.
- Eu prometo que assim que as condições se estabilizarem, que as ruas se estabilizarem, assim que possível, a segurança vai ser restaurada nesta nação como era antes de 25 de janeiro de 2011 - afirmou o ministro do Interior, referindo-se à data que deflagrou a revolução contra a virulenta ditadura do homem que governou o Egito por 29 anos.
A declaração foi vista como sinal da confiança renovada num aparato de segurança cuja brutalidade foi um dos maiores combustíveis da Primavera Árabe no Egito. E, depois de seis semanas de impasse político no país, o ataque de ontem contra os acampamentos da Praça Nahda e da mesquita Rabaa al-Adawiya - com blindados, tanques, disparos de rifles automáticos e gás lacrimogêneo - parece ter enterrado de vez qualquer esperança de um acordo político de reconciliação nacional, capaz de incorporar os islamistas partidários de Mursi ao novo governo interino apontado pelas Forças Armadas.
Ao contrário. Trata-se do mais claro indício de que o velho Estado policial do Egito está ressurgindo com força e desafiando manifestantes e políticos liberais no Gabinete - como o Nobel da Paz e vice-presidente Mohammed ElBaradei, que renunciou ontem em repúdio à violência. Além de provocar uma grave crise de segurança e confiança, o ataque despertou condenações internacionais e pôs o Egito mais próximo de uma guerra civil alimentada por islamistas furiosos com o sequestro do poder que conquistaram nas urnas. Levou de volta à quase estaca zero a revolução que se desenrolava desde 2011. E boa parte da culpa, alegam alguns analistas, é da liderança laica do país.
- Esta é a consequência de apoiar um golpe militar. Eles foram ingênuos. Eles têm sido ativos na adoração ao Exército, então por que mudar de ideia e se mostrar surpresos quando o general Abdel Fattah al-Sissi (o chefe das Forças Armadas) conduz a situação a seu curso militar natural? - questionou o analista político Shadi Hamid, do Centro Doha da Brookings Institution. - Agora não se pode mais falar de transição. O Egito assiste a uma nova era da revolução.
OCIDENTE PRESSIONOU PARA EVITAR OFENSIVA
A confusão nas ruas e o ultraje público e internacional diante do banho de sangue promovido ontem ainda não permitem avaliar com clareza o tamanho do retrocesso político no país. Por ora, dois fatores remetem, de fato, à odiada era Mubarak: o estabelecimento de um toque de recolher, previsto para vigorar até a manhã de hoje em 11 das 27 províncias do Egito e a volta do estado de emergência, que, na prática, equivale à retomada da odiada lei marcial da ditadura. Para milhares, o estado de exceção é uma das lembranças mais contestadas da era Mubarak por permitir prisões sem mandado, autorizar a interceptação de comunicações e proibir manifestações públicas. Os militares, porém, garantem que a medida é temporária, tendo previsão de duração de um mês.
- Nós achamos que as coisas chegaram a um ponto em que nenhum Estado com respeito próprio pode aceitar. Fomos forçados a intervir. Instruímos o Ministério do Interior a tomar todas as medidas para restabelecer a ordem, mas dentro da lei. As Forças Armadas observaram os mais altos graus de contenção - disse o premier Hazem el-Beblawy. - Se Deus quiser, vamos continuar. Vamos construir nosso Estado, civil e democrático.
Uma ofensiva contra os acampamentos vinha rachando o Gabinete formado pelos militares. Segundo fontes diplomáticas, logo após o fim do Ramadã, na semana passada, tanto Estados Unidos quanto União Europeia (UE) enviaram mensagens ao general Sissi e a ElBaradei insistindo na necessidade de uma solução negociada para a crise política no país.
- Tínhamos um plano político sobre a mesa que tinha sido aceito pela Irmandade Muçulmana. Eles podiam ter estudado esta opção, por isso, tudo o que aconteceu ontem foi desnecessário - lamentou o enviado da UE ao Egito, Bernardino Leon.
MILITARES FORAM ELEITOS GOVERNADORES
Os planos do general Sissi também são uma incógnita, embora ele já tenha dito não ter interesse num cargo político. Apesar de ter nomeado um presidente, um primeiro-ministro, um vice-presidente e todo um Gabinete, é ele a cara do governo. É ele o homem xingado nas ruas.
- Ele não só agiu (no golpe) ao ouvir as manifestações nas ruas contra Mursi como conseguiu recrutar o apoio de várias figuras públicas e políticos em manobras muito espertas - notou o professor de Ciência Política Mustapha Kamel Al-Sayyid, da Universidade do Cairo.
A Irmandade Muçulmana promete manter a luta contra o atual governo, mas não se sabe como. Tampouco está claro se as imagens da violência brutal das forças de segurança contra os islamistas serão capazes de sensibilizar os setores laicos da oposição, favoráveis ao golpe que destituiu Mursi em 3 de julho passado.
O que observadores apontam são indícios de intolerância e a sombra do velho autoritarismo característico da era Mubarak. Um dia antes da ofensiva contra os dissidentes, o governo interino fizera uma nomeação em massa de 25 governadores de províncias para substituir os titulares - islamistas - indicados por Mursi. Entre os novos governadores há nada menos que 19 generais, sendo 17 do Exército e dois da polícia. Entre os outros seis, civis, destacam-se dois ex-juízes leais a Mubarak e, na província mais importante do país, o Cairo, foi nomeado Galal Mostafa Saed, um velho amigo pessoal do ditador deposto e figura proeminente do antigo Partido Democrático Nacional de Mubarak.

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